SERRA DA MALCATA
Margeando a ribeira, fomos subindo acompanhados pelo marejar
sistémico das águas em melífluas melopeias, aqui e ali estagnadas em remansos
provocados por titânicas poldras perpetuadas no tempo e musgosas na base,
desprendendo uns filamentos viscosos e lenhosos, ardilosamente perigosos e
resvaladiços. Galgados estes estorvos, deparámos com a floresta quase virgem,
coesa e intransponível, onde os arbustos em completa simbiose formavam uma sebe
viva, impossível de escalar, obrigando-nos a contorná-la por buracos ou
alvéolos, pequenas depressões escavadas nas rochas homogéneas devido à erosão
química, obstruídas por tocos podres de árvores ou em vias de apodrecimento,
giestas e estevas estiadas, engalfinhadas em cisco e teias de aranha.
As velhas lascas de xisto misturadas com pedra de granito
talhado amontoavam-se a trouxe-mouxe naquilo que em tempos teria sido uma
azenha. Via-se ainda o desvio da água roubada à ribeira que agora corria
livremente e em cascata por cima do rodízio despedaçado, e duas mós de granito
enormes, relembrando as azáfamas e as canseiras a que o sustento obrigava. O
transporte das sementes era feito por mulas ou jumentos, animais sóbrios e
dolentes de dieta alimentar pobre e variada, mas com um apuradíssimo sentido de
orientação, acontecendo por vezes nestes trilhos ignaros e tresmalhados serem
atacados pelos amigos do alheio ou capitularem em armadilhas perpetradas pela
guarda fronteiriça. Quando isso acontecia, cavaleiro e montada davam “às de
vila Diogo”, azulando cada um para sua banda, sendo assim quase impossível
apanha-los, reagrupar-se-iam com certeza mais tarde, depois da fuga a
mata-cavalo, em lugares esconsos e perdidos na serra.
João Filipe in “Velhos São Os Trapos”
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