terça-feira, 28 de outubro de 2014

SERRA DA MALCATA

SERRA DA MALCATA

Margeando a ribeira, fomos subindo acompanhados pelo marejar sistémico das águas em melífluas melopeias, aqui e ali estagnadas em remansos provocados por titânicas poldras perpetuadas no tempo e musgosas na base, desprendendo uns filamentos viscosos e lenhosos, ardilosamente perigosos e resvaladiços. Galgados estes estorvos, deparámos com a floresta quase virgem, coesa e intransponível, onde os arbustos em completa simbiose formavam uma sebe viva, impossível de escalar, obrigando-nos a contorná-la por buracos ou alvéolos, pequenas depressões escavadas nas rochas homogéneas devido à erosão química, obstruídas por tocos podres de árvores ou em vias de apodrecimento, giestas e estevas estiadas, engalfinhadas em cisco e teias de aranha.
As velhas lascas de xisto misturadas com pedra de granito talhado amontoavam-se a trouxe-mouxe naquilo que em tempos teria sido uma azenha. Via-se ainda o desvio da água roubada à ribeira que agora corria livremente e em cascata por cima do rodízio despedaçado, e duas mós de granito enormes, relembrando as azáfamas e as canseiras a que o sustento obrigava. O transporte das sementes era feito por mulas ou jumentos, animais sóbrios e dolentes de dieta alimentar pobre e variada, mas com um apuradíssimo sentido de orientação, acontecendo por vezes nestes trilhos ignaros e tresmalhados serem atacados pelos amigos do alheio ou capitularem em armadilhas perpetradas pela guarda fronteiriça. Quando isso acontecia, cavaleiro e montada davam “às de vila Diogo”, azulando cada um para sua banda, sendo assim quase impossível apanha-los, reagrupar-se-iam com certeza mais tarde, depois da fuga a mata-cavalo, em lugares esconsos e perdidos na serra.


João Filipe in “Velhos São Os Trapos”

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