OS SEGADORES
Entretanto, pus-me a olhar para o horizonte onde lá longe se
alçava majestosa, a Estrela, em fluidos de azul e violeta, embarreirada por
montanhas negras, do negro das florestas e calvas pardacentas e melancólicas,
onde alastravam extensas courelas de matagal bravio e selvagem. A planura,
ligeiramente côncava, fez-me lembrar as searas de centeio que no tempo de
antigamente por ali proliferavam, em brandas e indizíveis ondulações de mar
benigno. Lembrei-me também dos ceifadores em linha, de lafões e calças de
surrobeco, camisa desapertada e lenço branco, obscurecido e enegrecido pelo
suor, empapado de restos de espigas, dobrado em três pontas e virado para trás,
protegendo o pescoço lavado de transpiração e tisnado quase negro do sol
faiscante, modo enérgico e vigoroso, espinha dobrada e o chão a deitar faíscas
de lume, lá iam avançando pouco a pouco, ceifando leivas, umas após as outras,
numa lufa-lufa de guerra. Parecia ainda cheirar os rescaldos baforados dos
campos ceifados, e pressentia-se no ar a moinha do grão e o aroma das paveias,
da alfavaca, da macela espremida nas mãos rudes dos ceifeiros. Os carros de
bois, quedados no meio dos restolhos, com os bois amodorrados da canícula,
abanando a cauda em todas as direcções, tentando espantar os exércitos de insectos
vampíricos, enquanto carregadores, amontoavam as gabelas, atadas em molhos
escaldantes no chedeiro do carro, habilmente entrecruzados por entre os
afueiros. Atrás, no restolho descampado a coitada da respigueira, chapéu de
palha e lenço negro enrolado na cabeça, dobrada sobre si mesma repescava as
últimas espigas esquecidas, que corriam, corriam ao sopro da brisa, desferindo
uma tremulina disfónica, que remoinhava em vórtice. Quando «acordei» já o grupo
de banhistas, tagarelando entre eles, subia penosamente o declive e o Amoroso
anunciava a boa nova, a feijoada estava pronta e metia-se pelos olhos adentro.
João Filipe in “Velhos São os trapos”
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