terça-feira, 28 de outubro de 2014

OS SEGADORES

OS SEGADORES

Entretanto, pus-me a olhar para o horizonte onde lá longe se alçava majestosa, a Estrela, em fluidos de azul e violeta, embarreirada por montanhas negras, do negro das florestas e calvas pardacentas e melancólicas, onde alastravam extensas courelas de matagal bravio e selvagem. A planura, ligeiramente côncava, fez-me lembrar as searas de centeio que no tempo de antigamente por ali proliferavam, em brandas e indizíveis ondulações de mar benigno. Lembrei-me também dos ceifadores em linha, de lafões e calças de surrobeco, camisa desapertada e lenço branco, obscurecido e enegrecido pelo suor, empapado de restos de espigas, dobrado em três pontas e virado para trás, protegendo o pescoço lavado de transpiração e tisnado quase negro do sol faiscante, modo enérgico e vigoroso, espinha dobrada e o chão a deitar faíscas de lume, lá iam avançando pouco a pouco, ceifando leivas, umas após as outras, numa lufa-lufa de guerra. Parecia ainda cheirar os rescaldos baforados dos campos ceifados, e pressentia-se no ar a moinha do grão e o aroma das paveias, da alfavaca, da macela espremida nas mãos rudes dos ceifeiros. Os carros de bois, quedados no meio dos restolhos, com os bois amodorrados da canícula, abanando a cauda em todas as direcções, tentando espantar os exércitos de insectos vampíricos, enquanto carregadores, amontoavam as gabelas, atadas em molhos escaldantes no chedeiro do carro, habilmente entrecruzados por entre os afueiros. Atrás, no restolho descampado a coitada da respigueira, chapéu de palha e lenço negro enrolado na cabeça, dobrada sobre si mesma repescava as últimas espigas esquecidas, que corriam, corriam ao sopro da brisa, desferindo uma tremulina disfónica, que remoinhava em vórtice. Quando «acordei» já o grupo de banhistas, tagarelando entre eles, subia penosamente o declive e o Amoroso anunciava a boa nova, a feijoada estava pronta e metia-se pelos olhos adentro.


João Filipe in “Velhos São os trapos”

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