terça-feira, 28 de outubro de 2014

OUTONO

O OUTONO

Seco e zangado, o outono surgiu fazendo os seus desvarios e o plantio nos vergeis desnudados deixava transparecer o seu estado de espírito, num esbracejar contínuo de mil ramos e de mil bocas, ululantes e indispostas.
Descontentes os olivais protestavam, desprendendo a custo, tristes e lacrimosos a azeitona verde na sua prematura criação, enquanto os aldeões pediam clemência aos espíritos, com promessas de novenas, procissões e martírios corporais.
Fradique “ o finório”, homem de uns quarenta anos, feio e doentio tinha o peito curvo como o de uma ave, de cabeça calva, o pescoço era magro, o nariz proeminente e caído em ar de foice, parecia um abutre. Era pessoa desavinda, pilha-galinhas e malquisto na aldeia mas, nestas alturas, insurgia-se levantando os braços e, com a voz rouca e bafienta, clamava:
- Só a Santinha do Monte, nos pode salvar destes ventos demoníacos que, nos destoem as colheitas e nos impedem de malhar o pão. Povo da terra! Façamos uma procissão ao mudar da lua e roguemos-lhe, que acalme estas ventanias.
Pouco dado a estas práticas, o padre aceitava-as mas não participava, alegando serem desaprovadas pelo bispo. Tomando livremente as rédeas da operação, o Finório ajudado por uma dezena de acólitos, subiram a serra íngreme e alcantilada, retiraram a imagem do nicho, e trouxeram-na para a entrada da aldeia, perante a recepção das gentes do povoado.
A mole ressurgida da noite e ávida de milagres empunhava velas tremeluzentes, identificando-se com o todo-poderoso e lentamente, o novelo cintilante começava desenrolar-se em direcção ao povoado. Qual monstro flagelado, o vento, irado, soprava e silvava por tudo onde era sítio e, os seus roncos desbragados eram tónico para os penitentes que, exorcizavam o medo entoando cânticos à Santinha do Monte.
A procissão, encabeçada pelo Finório que, segurava bem alto entre as mãos, a imagem da santinha e apelava febrilmente à oração, chegava por fim ao adro da Igreja onde se desfez num manto cintilante parecendo querer abraçar a Igreja que de portas abertas mostrava a nave iluminada, reflectindo o barroco num “arco-íris” flamejante.
Hirto e à frente da populaça entrou na Igreja, segurando a imagem entre as mãos, as mesmas mãos tantas vezes usadas para pilhar galinhas ou, com blandícias de pervertido acariciar crianças desprotegidas, devagar, muito devagar e em tom de ritual subiu a coxia, expondo a Santinha num altar lateral.
Ana convicta e confessa nos poderes de Maria acompanhou até ao fim o cerimonial, enquanto o João, seu marido, avesso a estes ritos, deambulava pelas tabernas perpetuando velhos hábitos, regressando a casa já altas horas da madrugada. Resmungando, batia com as portas e criticava a mulher e todos os outros basbaques, pelas suas crenças e serem comandados por um filha-da-puta, sedutor de crianças.
Perante tamanha animosidade. Em vão Ana tentou esboçar algumas reacções, no sentido de acalmar a ira do marido.
- Cala-te ranhosa de merda, sois todas umas putas… o que vocês querem é folguedo, mas descansa, granda vadia, a festança vem a caminho, mais rápido do que julgas.
Foi o princípio de um longo calvário, prenhe de dor e de lágrimas. O estigma da família estava reaberto e a chaga tinha renascido.
Adivinhavam-se tempos muito difíceis.


João Filipe in “Eram Dias De 100 Anos”

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