O OUTONO
Seco e zangado, o outono surgiu fazendo os seus desvarios e
o plantio nos vergeis desnudados deixava transparecer o seu estado de espírito,
num esbracejar contínuo de mil ramos e de mil bocas, ululantes e indispostas.
Descontentes os olivais protestavam, desprendendo a custo,
tristes e lacrimosos a azeitona verde na sua prematura criação, enquanto os
aldeões pediam clemência aos espíritos, com promessas de novenas, procissões e
martírios corporais.
Fradique “ o finório”, homem de uns quarenta anos, feio e
doentio tinha o peito curvo como o de uma ave, de cabeça calva, o pescoço era
magro, o nariz proeminente e caído em ar de foice, parecia um abutre. Era
pessoa desavinda, pilha-galinhas e malquisto na aldeia mas, nestas alturas,
insurgia-se levantando os braços e, com a voz rouca e bafienta, clamava:
- Só a Santinha do Monte, nos pode salvar destes ventos
demoníacos que, nos destoem as colheitas e nos impedem de malhar o pão. Povo da
terra! Façamos uma procissão ao mudar da lua e roguemos-lhe, que acalme estas
ventanias.
Pouco dado a estas práticas, o padre aceitava-as mas não
participava, alegando serem desaprovadas pelo bispo. Tomando livremente as
rédeas da operação, o Finório ajudado por uma dezena de acólitos, subiram a
serra íngreme e alcantilada, retiraram a imagem do nicho, e trouxeram-na para a
entrada da aldeia, perante a recepção das gentes do povoado.
A mole ressurgida da noite e ávida de milagres empunhava
velas tremeluzentes, identificando-se com o todo-poderoso e lentamente, o
novelo cintilante começava desenrolar-se em direcção ao povoado. Qual monstro
flagelado, o vento, irado, soprava e silvava por tudo onde era sítio e, os seus
roncos desbragados eram tónico para os penitentes que, exorcizavam o medo
entoando cânticos à Santinha do Monte.
A procissão, encabeçada pelo Finório que, segurava bem alto
entre as mãos, a imagem da santinha e apelava febrilmente à oração, chegava por
fim ao adro da Igreja onde se desfez num manto cintilante parecendo querer
abraçar a Igreja que de portas abertas mostrava a nave iluminada, reflectindo o
barroco num “arco-íris” flamejante.
Hirto e à frente da populaça entrou na Igreja, segurando a
imagem entre as mãos, as mesmas mãos tantas vezes usadas para pilhar galinhas
ou, com blandícias de pervertido acariciar crianças desprotegidas, devagar,
muito devagar e em tom de ritual subiu a coxia, expondo a Santinha num altar
lateral.
Ana convicta e confessa nos poderes de Maria acompanhou até
ao fim o cerimonial, enquanto o João, seu marido, avesso a estes ritos,
deambulava pelas tabernas perpetuando velhos hábitos, regressando a casa já
altas horas da madrugada. Resmungando, batia com as portas e criticava a mulher
e todos os outros basbaques, pelas suas crenças e serem comandados por um
filha-da-puta, sedutor de crianças.
Perante tamanha animosidade. Em vão Ana tentou esboçar
algumas reacções, no sentido de acalmar a ira do marido.
- Cala-te ranhosa de merda, sois todas umas putas… o que
vocês querem é folguedo, mas descansa, granda vadia, a festança vem a caminho,
mais rápido do que julgas.
Foi o princípio de um longo calvário, prenhe de dor e de
lágrimas. O estigma da família estava reaberto e a chaga tinha renascido.
Adivinhavam-se tempos muito difíceis.
João Filipe in “Eram Dias De 100 Anos”
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