sexta-feira, 31 de outubro de 2014
terça-feira, 28 de outubro de 2014
AS METÁTESES DO GOZO
"Os tipos contemporâneos são aqueles em que o eu se
encontra ausente; por conseguinte, não agem insconscientemente no sentido
próprio do termo; limitam-se a reflectir traços objectivos. Em conjunto,
participam neste ritual insensato, adoptando o ritmo compulsivo da repetição, e
crescem afectivamente pouco: a demolição do eu reforça o narcisismo e as suas
derivações colectivas."
"Um protesto perplexo de inocência é sempre acompanhado
por um sentimento kafkiano indeterminado de culpa «abstracta», sentimento
segundo o qual, aos olhos do Poder, sou a priori terrivelmente culpado de qualquer
coisa, embora não me seja possível saber de que sou ao certo culpado, e por
isso - por não saber do que sou culpado - sou mais culpado ainda; ou, mais
exactamente, é na própria ignorância aqui em causa que consiste a minha
verdadeira culpa."
CONVERSAS SEM SENTIDO
CONVERSA ENTRE AMIGOS
Numa dessas noites intermináveis, espiando e meditando em
frente das brasas incandescentes, provindas dos tições odoríficos de oliveira
que alagavam apinhados dentro da lareira da sala de jantar, o meu amigo Chico
parecendo acordar dum feitiço hipnótico, entrou “a matar”.
- Continuas como sempre a renegar a democracia?
Por alguns longos segundos, continuei fixando as labaredas,
quando, repentinamente, reagi.
- Pois! Sabes que quando me debruço nestes enigmas as minhas
dificuldades são inúmeras e acabo sempre por esbarrar com um sofisma: ao
pretenderem provar o poder da Democracia, fazendo a apologia da frase de
Winston Churchill “ Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem
defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as
demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”, e quando tento
mostrar a imperfeição dessa ordenação, sonegam-me o direito a proferir uma
opinião, precisamente por logo afirmarem se não sou democrata serei
indubitavelmente ditador…
Embalado o meu amigo ripostou.
– Não acreditas em nenhum sistema político? Acreditamos
sempre nalguma coisa! Cada um de nós, bem no fundo de nós mesmos, temos uma
forma politica que aceitamos publica,ou, secretamente, e aí, a essa cripta onde
enterramos todas as misérias e tristezas, voltamos sempre quando nos sentimos maltratados
e escorraçados.
Mas eu aturdido, meneava a cabeça repetindo.
– Garanto-te que não acredito em nenhum sistema político…
Deambulo no escuro… sem paz e sem sossego.
João Filipe “Conversas sem sentido”
CONVERSAS SEM SENTIDO
CONFABULAÇÕES NOCTURNAS
Creio, - alguém afirmou -, que a religiosidade e a fé dos
homens têm sido transmitidas ao longo dos séculos sob diversas formas, entre
elas, por atavismo. Ou seja, a reaparição, em gerações recentes, de
características religiosas vindas de antepassados e que não se tenham
manifestado nas gerações intermédias, este ressurgimento ideológico ou
religioso é particularmente provocado pelo medo. Sim,
falo do medo, como sentimento irracional e não do medo, como
prevenção racional de possíveis acontecimentos, ou do medo convencional que não
passa de uma máscara sendo habitualmente simulada sobre a capa de frases
amáveis Todo o recrudescimento da coragem generalizada perante o terror, serve
para aumentar a religiosidade e consequentemente a afoiteza entre os seus
acólitos e pregadores. É imperativo que a sociedade divulgue a coragem para
humanizar o homem.
Assim sendo, devemos seguir a natureza humana, porque os
nossos impulsos e desejos constituem o material de que é feita a nossa
felicidade
Essencialmente por isso, recuso-me a admitir que, apesar da
necessidade de o Homem ter de agir como um animal social, seja esta
obrigatoriedade tão despótica, que o obrigue a “aborregar-se” e a “borrar-se”,
perante todas as determinações que lhe são impostas.
João Filipe “Conversas sem sentido”
CONVERSAS SEM SENTIDO
INTERLOCUÇÕES NOCTURNAS
Aborregados em volta da lareira, onde, por vezes as brasas
já se tinham consumido, dando lugar a um imenso brasido e aonde as longas e
notívagas cavaqueiras pareciam infindáveis, acabava invariavelmente sempre
alguém, por afirmar, como se, ao sétimo dia da criação, Deus, tivesse feito o
homem como a pérola que colocou na concha do Mundo, ao que imediatamente um
outro desvelado, energicamente ripostava, lembrando que a humanidade, é um
“caramouço” minúsculo e quase insignificante, sobre a crosta de um globo
“minorca”.
“Conversas sem sentido”
CONVERSAS NA TABERNA
No interior do bar, ouviram-se umas pancadas secas numa das
mesas na esplanada, fui ver, algo desavindo com o trabalho. Dois avinhados
pegamassos espanhóis, hidrópicos, um completamente calvo com olhos verdes,
húmidos e lacrimejantes, o outro, adunco, e testa larga, esbarrigados e
pândegos parecendo caricaturas de Goya, e acastelhanando um português
macarrónico reclamavam “dos cafés” um “cortado” e o outro com “leche”.
No regresso ao bar, ouvia-se na televisão, um celebérrimo
articulista desportivo, arengando de forma séria e grave, sobre a questão
filosófica do futebol nacional, mais parecendo, o dito e sublime orador, querer
explicar uma intrincada e espinhosa tese cientifica.
Sorri e comentei com os meus botões: Para quê tanta “merda”,
não será que a questão filosófica do futebol é tão simples como a bola entrar
ou não entrar na baliza?
CONVERSAS SEM SENTIDO
CONVERSAS SEM SENTIDO
INTROSPEÇÕES
O meu desejo é que certos dias, em determinadas horas, por
alguns minutos ou segundos, me possa acontecer algo de imprevisto, pois
decidi-me por aquilo que ironicamente assinalo de; “tirar férias do quotidiano”
por uns dias, ou, por algumas semanas.
Querem saber como vivo quando estou sozinho?
O que vos posso dizer é que, de noite, com o quarto às
escuras e os vidros iluminados da janela pela luz difusa vinda do exterior,
enxergo com algum sentimento de impotência, a sala onde os meus pensamentos,
depois de usados, ali ficam refastelados no sofá, macambúzio e sorumbáticos,
tal qual os clientes desesperançados, na sala de espera de um mau causídico.
Conversas sem sentido
JOÃO fILIPE
PARABÉNS SR. ORELHAS EXTRATERRESTRE
É só, porque estão a ser laureados os prémios “Nobel” de
2014, e só por isso que venho com esta conversa, não por “tiques” de
puritanismo da palavra, mas com o fito de prestar uma pequena contribuição, à
Língua Portuguesa, para que, seja menos” trucidada” por toda essa
“arraia-miúda” que, invariavelmente nos ocupa os espaços televisivos: doutores,
ministros, comentadores, analistas e outros quejandos.
Estava eu, com os olhos plasmados no televisor assistindo
aborregado no sofá, ao discorrer do telejornal quando, o pivô de ar altivo,
orelhas de extraterrestre, sorriso de “malandreco” e um ligeiro e subtil tique
no olho esquerdo, anunciou:
- “A Academia sueca atribui nesta quinta feira o Prémio
Nobel da Literatura ao escritor francês Patrick Modiano, destacando o modo como
a sua “arte da memória evoca os mais inefáveis destinos humanos e desvela o
mundo da ocupação”. Isto é, da ocupação alemã da França durante a Segunda
Guerra, um tópico recorrente na obra de Modiano, filho de uma actriz flamenga e
de um judeu de origem italiana”…
Não foi a notícia em si que me chamou a atenção, pois como
já é hábito os noticiários da estação pública, serem repetitivos e enfadonhos,
mas a forma como o “orelhas extraterrestre” pronunciou a palavra, Nobel (…No
bél…).
Gosto muito pouco deste senhor, mas mérito lhe seja
conferido, acertou em cheio, talvez porque alguém lhe assoprou aos ouvidos ou,
talvez não, mas acertou.
O vocábulo Nobel é uma palavra oxítona tal como (lençol,
paiol… ) assim sendo, o acento tónico incide sobre a última sílaba e lemos
obviamente (Nobél), mas escrevemos Nobel. Para que ela fosse paroxítona, ou
seja, que o acento tónico incidisse na penúltima silaba, teríamos que escrever
Nóbel, tal como (lápis…etc) e leriamos como quase todos esses basbaques,
pseudo-intelectuais lêem (Nóbel), quando escrevem Nobel.
Parabéns Sr. Extraterrestre
CONVERSAS NA TABERNA
CONVERSAS NA TABERNA
Na aldeia o dia escorria calmo, tal calmo como a calmaria
que o atabafava.
Na taberna, os clientes chegavam a conta-gotas ofegantes e
esbaforidos com a canícula e dolentes, encostavam a barriga ao balcão
reclamando uma bebida que lhes matasse a sequidão.
«Dois tintos frescos», ordenaram-me dois velhotes; um
baixote e de rosto vermelhusco e fosse pela pouca claridade que havia no
balcão, ao retirar os óculos, numa tentativa frustrada de agarrar o copo ou de
me ver melhor, mostrou os olhos desembaraçados dos vidros, eram pestanejantes e
patéticos, o outro, um pouco mais jovem com uma mancha incolor quase branca que
lhe maculava os cabelos escuros, tinha os olhos engastados nas órbitas
escurecidas, falava calmamente parecendo meditar.
Afáveis e risonhos, aparentavam tranquilidade por fora, mas
diziam palavras tão angustiadas e tinham o espírito tão oprimido, que o mais
certo, era o fado da já longa caminhada, lhes ter macerado e desengranzado a
existência, ou ter-lhes rogado peçonha.
Nós, como quem diz a sociedade, sabemos dessa solidão!...É a
solidão de Babel (maldição).
Homens velhos com a mesma entidade e as mesmas convicções,
podem passar um dia inteiro conversando, conversando da maneira mais livre mais
despegada e mais sincera, sem se compreenderem, ou se tentarem compreender por
um minuto… sem se encontrarem nem fazerem um esforço de se encontrar, nem que
fosse por um segundo.
Conversas sem sentido
João Filipe
CONVERSAS NA TABERNA
CONVERSAS NA TABERNA
Na aldeia, o “verão dos marmelos” fazia jus ao seu nome e a
bonança reavivava pretéritas memórias estivais.
Na taberna, um grupo de pegamassos avinhados, contestavam a
já antiga e malquista opção do actual governo, de ter retirado o feriado no
“Dia de Todos os Santos”: «onde há que já se viu”, «são uns filhas da puta»,
«Se eu mandasse metia-os a todos num sítio que eu cá sei».
Entretanto, numa mesa disjunta dos restantes, um outro do
mesmo grupo seguia com afincada atenção ao “telejornal” , que “aldigava” sobre
as alterações climáticas: «Um novo estudo publicado por Peter Adams, defende
que o aquecimento global se deve a transformações do Sol. A hipótese advoga que
o aumento da actividade solar reduz a nebulosidade, ao alterar os raios
cósmicos. Assim, quando há uma redução da nebulosidade, regista-se uma maior
penetração de luz solar, o que conduz ao aquecimento do Planeta».
Por alguns longos instantes ali ficou de olhos magnetizados
ao televisor. parecendo hipnotizado, para logo depois, como impulsionado por
uma mola, saltou do banco, dirigindo-se apressadamente para a porta de saída.
Foram breves os momentos que mediaram a sua ausência, quando ressurgiu,
mostrando-se mais aliviado e gritando a plenos pulmões.
- «É por isso!...»
- «É por isso o quê?...»
Questionaram os comparsas algo apreensivos.
- «É por isso que o sol vai tão remelado»
Conversas sem sentido
João Filipe
CONVERSAS NA TABERNA
Hoje os políticos na praça pública alardeiam sobre a
democracia como se de uma trivialidade, ou vulgaridade se tratasse, outros,
apesar de reconhecerem o quão utópica e traiçoeira é a sua viabilidade, persistem
na possibilidade, apesar de remota, da sociedade se poder reger por esta
ordenação, norteados que estão, por um desejo absurdo do irreal.
- Diz-me então homem sibilino: que farias tu?
- Perante a perplexidade da questão só tenho uma resposta:
abolia a realidade.
Conversas sem sentido
João Filipe
CONVERSAS NA TABERNA
CONVERSAS NA TAVERNA
Era meio-dia, da cozinha emanavam aqueles apetitosos e
estimulantes eflúvios, balsamo para uma boa refeição, enquanto se aguardava a
chegada dos clientes.
Quando o abanar das fitas da porta de entrada, fizeram
adivinhar a chegada dos dois primeiros clientes.
Ele, corpulento tinha o cabelo ruivo que lhe acentuava a cor
de cenourinha do rosto pintalgado, os olhos de um verde muito claro descansando
sobre um robusto nariz escarlate, alternavam para azul consoante a luminosidade
dos lábios finos e belicosos, seguravam um queixo minúsculo mas aparentemente
sólido.
Ela era jovem de porte altivo e imbuída de uma palidez quase
nórdica, cabelo loiro muito muto abundante e caprichosamente ondulado e pele
bem tisnada pelo sol. Envergava vestido azul-claro, comprido, alteando-lhe o
porte com um subtil e harmonioso toque.
- Bom-dia. Já servem refeições.
Perguntaram com ar majestoso.
- Bom-dia. Façam favor
Respondi, mostrando a entrada do restaurante, e dirigiram-se
para a sala.
Não sobrevieram longos minutos, para que um novo casal
começasse a dar entrada no estabelecimento.
Bom-dia.
Perguntei não obtendo qualquer resposta. Cabisbaixos e
deprimidos, tomaram a direcção da sala de jantar.
Ele, duns quarenta anos; baixote, disforme e malparecido,
tinha uma pronunciada curvatura nos ombros, cabeça calva, pescoço magro de
abutre e nariz proeminente e em foice, parecia arrastar o corpo.
Ela, talvez mais nova, segurava-o pelo braço e encaminhava-o
com suas pupilas herméticas e sibilinas, os seus traços eram voluntariosos e
mergulhados num oceano de gordura, cujas últimas vagas transformavam as rugas,
o quase inexistente pescoço.
É também desta freguesia flutuante de pobre diabos, que
estes negócios subsistem, e não sei bem porque ondas de miséria, de crime, ou
de azar, e que talvez felizes por se terem sentados à mesa e sem quase se
atreverem a levantar os olhos, com as costas curvadas sobre o passado que
parecia pesado, amontoavam longamente e demoradamente o pão na sopa, antes de
lá cravarem a colher.
Venturosos não se aperceberam do olhar faiscante e
reprovativo que os primeiros lhes dirigiam, sentindo-se humilhados pela sua
presença.
Conversa sem sentido
João Filipe
MEIMOA
MEIMOA
Sob um céu ensimesmado por um não sei quê de angústia e
renúncia, a pequena aldeia da Meimoa, agarrada à encosta de São Domingos,
revelou-se entrecortada por um sem número de quelhas e vielas de corpo xistoso
mal ajaezado e telhados parecendo um mar revolto de telhas e empenas,
mostrando, ufana, os beirais em granito aparelhado onde, nas tardes solarengas,
homens e mulheres, acocorados, espreitam o declinar do sol no pináculo
branco-sujo da Estrela. Os habitantes, estáticos, olham o mundo de longe só
acreditando naquilo que fazem. Elas guardam a vida e o espaço da casa, eles são
os guardiões severos do chão da idade e do seu gado. Afáveis e risonhos,
aparentam tranquilidade por fora mas dizem palavras tão angustiadas e têm o
espírito tão oprimido que o mais certo é o fado lhes ter cagádo, macerado e
desengranzado a existência, ou ter-lhes rogado peçonha.
João Filipe in “Velhos são os trapos”
SERRA DA MALCATA
SERRA DA MALCATA
Margeando a ribeira, fomos subindo acompanhados pelo marejar
sistémico das águas em melífluas melopeias, aqui e ali estagnadas em remansos
provocados por titânicas poldras perpetuadas no tempo e musgosas na base,
desprendendo uns filamentos viscosos e lenhosos, ardilosamente perigosos e
resvaladiços. Galgados estes estorvos, deparámos com a floresta quase virgem,
coesa e intransponível, onde os arbustos em completa simbiose formavam uma sebe
viva, impossível de escalar, obrigando-nos a contorná-la por buracos ou
alvéolos, pequenas depressões escavadas nas rochas homogéneas devido à erosão
química, obstruídas por tocos podres de árvores ou em vias de apodrecimento,
giestas e estevas estiadas, engalfinhadas em cisco e teias de aranha.
As velhas lascas de xisto misturadas com pedra de granito
talhado amontoavam-se a trouxe-mouxe naquilo que em tempos teria sido uma
azenha. Via-se ainda o desvio da água roubada à ribeira que agora corria
livremente e em cascata por cima do rodízio despedaçado, e duas mós de granito
enormes, relembrando as azáfamas e as canseiras a que o sustento obrigava. O
transporte das sementes era feito por mulas ou jumentos, animais sóbrios e
dolentes de dieta alimentar pobre e variada, mas com um apuradíssimo sentido de
orientação, acontecendo por vezes nestes trilhos ignaros e tresmalhados serem
atacados pelos amigos do alheio ou capitularem em armadilhas perpetradas pela
guarda fronteiriça. Quando isso acontecia, cavaleiro e montada davam “às de
vila Diogo”, azulando cada um para sua banda, sendo assim quase impossível
apanha-los, reagrupar-se-iam com certeza mais tarde, depois da fuga a
mata-cavalo, em lugares esconsos e perdidos na serra.
João Filipe in “Velhos São Os Trapos”
OUTONO
O OUTONO
Seco e zangado, o outono surgiu fazendo os seus desvarios e
o plantio nos vergeis desnudados deixava transparecer o seu estado de espírito,
num esbracejar contínuo de mil ramos e de mil bocas, ululantes e indispostas.
Descontentes os olivais protestavam, desprendendo a custo,
tristes e lacrimosos a azeitona verde na sua prematura criação, enquanto os
aldeões pediam clemência aos espíritos, com promessas de novenas, procissões e
martírios corporais.
Fradique “ o finório”, homem de uns quarenta anos, feio e
doentio tinha o peito curvo como o de uma ave, de cabeça calva, o pescoço era
magro, o nariz proeminente e caído em ar de foice, parecia um abutre. Era
pessoa desavinda, pilha-galinhas e malquisto na aldeia mas, nestas alturas,
insurgia-se levantando os braços e, com a voz rouca e bafienta, clamava:
- Só a Santinha do Monte, nos pode salvar destes ventos
demoníacos que, nos destoem as colheitas e nos impedem de malhar o pão. Povo da
terra! Façamos uma procissão ao mudar da lua e roguemos-lhe, que acalme estas
ventanias.
Pouco dado a estas práticas, o padre aceitava-as mas não
participava, alegando serem desaprovadas pelo bispo. Tomando livremente as
rédeas da operação, o Finório ajudado por uma dezena de acólitos, subiram a
serra íngreme e alcantilada, retiraram a imagem do nicho, e trouxeram-na para a
entrada da aldeia, perante a recepção das gentes do povoado.
A mole ressurgida da noite e ávida de milagres empunhava
velas tremeluzentes, identificando-se com o todo-poderoso e lentamente, o
novelo cintilante começava desenrolar-se em direcção ao povoado. Qual monstro
flagelado, o vento, irado, soprava e silvava por tudo onde era sítio e, os seus
roncos desbragados eram tónico para os penitentes que, exorcizavam o medo
entoando cânticos à Santinha do Monte.
A procissão, encabeçada pelo Finório que, segurava bem alto
entre as mãos, a imagem da santinha e apelava febrilmente à oração, chegava por
fim ao adro da Igreja onde se desfez num manto cintilante parecendo querer
abraçar a Igreja que de portas abertas mostrava a nave iluminada, reflectindo o
barroco num “arco-íris” flamejante.
Hirto e à frente da populaça entrou na Igreja, segurando a
imagem entre as mãos, as mesmas mãos tantas vezes usadas para pilhar galinhas
ou, com blandícias de pervertido acariciar crianças desprotegidas, devagar,
muito devagar e em tom de ritual subiu a coxia, expondo a Santinha num altar
lateral.
Ana convicta e confessa nos poderes de Maria acompanhou até
ao fim o cerimonial, enquanto o João, seu marido, avesso a estes ritos,
deambulava pelas tabernas perpetuando velhos hábitos, regressando a casa já
altas horas da madrugada. Resmungando, batia com as portas e criticava a mulher
e todos os outros basbaques, pelas suas crenças e serem comandados por um
filha-da-puta, sedutor de crianças.
Perante tamanha animosidade. Em vão Ana tentou esboçar
algumas reacções, no sentido de acalmar a ira do marido.
- Cala-te ranhosa de merda, sois todas umas putas… o que
vocês querem é folguedo, mas descansa, granda vadia, a festança vem a caminho,
mais rápido do que julgas.
Foi o princípio de um longo calvário, prenhe de dor e de
lágrimas. O estigma da família estava reaberto e a chaga tinha renascido.
Adivinhavam-se tempos muito difíceis.
João Filipe in “Eram Dias De 100 Anos”
OS SEGADORES
OS SEGADORES
Entretanto, pus-me a olhar para o horizonte onde lá longe se
alçava majestosa, a Estrela, em fluidos de azul e violeta, embarreirada por
montanhas negras, do negro das florestas e calvas pardacentas e melancólicas,
onde alastravam extensas courelas de matagal bravio e selvagem. A planura,
ligeiramente côncava, fez-me lembrar as searas de centeio que no tempo de
antigamente por ali proliferavam, em brandas e indizíveis ondulações de mar
benigno. Lembrei-me também dos ceifadores em linha, de lafões e calças de
surrobeco, camisa desapertada e lenço branco, obscurecido e enegrecido pelo
suor, empapado de restos de espigas, dobrado em três pontas e virado para trás,
protegendo o pescoço lavado de transpiração e tisnado quase negro do sol
faiscante, modo enérgico e vigoroso, espinha dobrada e o chão a deitar faíscas
de lume, lá iam avançando pouco a pouco, ceifando leivas, umas após as outras,
numa lufa-lufa de guerra. Parecia ainda cheirar os rescaldos baforados dos
campos ceifados, e pressentia-se no ar a moinha do grão e o aroma das paveias,
da alfavaca, da macela espremida nas mãos rudes dos ceifeiros. Os carros de
bois, quedados no meio dos restolhos, com os bois amodorrados da canícula,
abanando a cauda em todas as direcções, tentando espantar os exércitos de insectos
vampíricos, enquanto carregadores, amontoavam as gabelas, atadas em molhos
escaldantes no chedeiro do carro, habilmente entrecruzados por entre os
afueiros. Atrás, no restolho descampado a coitada da respigueira, chapéu de
palha e lenço negro enrolado na cabeça, dobrada sobre si mesma repescava as
últimas espigas esquecidas, que corriam, corriam ao sopro da brisa, desferindo
uma tremulina disfónica, que remoinhava em vórtice. Quando «acordei» já o grupo
de banhistas, tagarelando entre eles, subia penosamente o declive e o Amoroso
anunciava a boa nova, a feijoada estava pronta e metia-se pelos olhos adentro.
João Filipe in “Velhos São os trapos”
AS AVÓS DA MINHA TERRA
AS AVÓS DA MINHA TERRA
… Por norma a ti Ana passava os dias ao lume, salvo raros e
esparsos dias no pino do verão que, vinha até à soleira da porta, então
sentava-se numa banca de cortiça e deliciava-se com os últimos afagos do
entardecer. Esse dia não sendo o caso, entrei e divisei-a sentada na seu
tropeço de meia-lua à esquerda da lareira.
- Boa tarde ti Ana. Posso-me sentar?
Perguntei, após ter franqueado a porta
Serena, de queixo decaído e boca escancarada, arregalou os
olhos numa tentativa de me ver melhor, de me sentir melhor, de me observar
melhor. Até que por fim lentamente, as suas pálpebras, se baixaram. Já não
tinha interesse, em distinguir a realidade do sonho, deixou-se examinar sem
impaciência pelos meus olhos inquietos, inerte, tranquila, e ausente.
O universo forma um todo estranho hermético onde ela
alienada do mundo já não tinha lugar, estava só…, só e em presença do mistério.
O seu olhar ficou parado nos mil e um diabinhos, formados nas labaredas e que
rapidamente se sumiam invadindo-lhe a casa. No entanto sabia se continuasse
imóvel, eles fugiriam para o exterior e ela estaria protegida, porque todos os
dias antes de atar o cabelo escondia dois crucifixos, um de cada lado da cabeça
por entre o cabelo e no cruito uma imagem, do Sagrado Coração de Jesus
- É melhor ires para casa, - Disse-me ela – os demónios
costumam sair ao entardecer à procura das almas errantes se não encontrarem
nenhuma, estoiram com os primeiros raios da aurora, mas se encontrarem alguma
alma perdida, chupam-lhe o sangue para se alimentarem.
- Adeus Ti Ana. – Disse.
Com os ouvidos atordoados, e azoinados de afogado, o som que
lhe chegava era longínquo e intermitente enquanto os olhos, pequeninos de água,
escondidos por detrás das sobrancelhas, se iam levantando, esperando que eu me
sumisse …
Extrato da obra “as avós da minha terra”
PENAMACOR
PENAMACOR
Penamacor é uma vila entalada entre o monte coroado com a
arcaica torre de vigia, de olhos postos na Espanha hostil e belicosa de ontem e
porta de entrada de hoje para a Europa do desenvolvimento e das ideias e, as
velhas muralhas gastas pela erosão e por ódios escorados em enésimos mitos, de
diferentes e discrepantes crenças. Guardaram ao longo do tempo e acautelam
ainda no seu pétreo ser, mênstruos e prantos entornados por causas supostamente
superiores, abrigando ainda hoje, certo casario austero ardido pelo tempo que
recolhe na memória quimeras desaparecidas. Sentadas ao beiral de portas
graníticas, homens e mulheres corcovados pelo negro rafado do fado, espreitam
os últimos afagos de sol que pouco a pouco se esvai, cobreado, a sumir-se na
Estrela. Os homens e as mulheres baixam os olhos às tristezas próprias e
alheias, não só porque ninguém ou quase ninguém passa por eles mas, porque já
não vale a pena olhar. Comtemplam as pequenas coisas com olhares profundos de
hipnoses metafisicas.
Ao lado esquerdo, à entrada das muralhas, ergue-se seco
esguio no seu corpo granítico, o pelourinho, na provecta praça pública,
reminiscências de réprobos supliciados, a troco do poder alcançado pela plebe.
Mais abaixo, á entrada do rossio, a Igreja de S. Pedro, do século XIII, de um
romântico tardio, de uma entrada robusta ligeiramente ogival e virada para
poente. O interior, austero e com escassas entradas de luz, era vaticinado à
crença, difundida por obesos mandatários de um Deus odiento e furibundo, só
aplacado com prédicas martírios e doações materiais.
Todo o casario escorria para o jardim municipal, ventoso no
Inverno e carente de água no Verão. A fonte à entrada, redonda e granítica
municiada com um esguicho comandado por uma alavanca lateral, raras eram as
vezes que cuspia o tão desejado e almejado líquido. Em frente ao gradeamento
era norma, nos dias de estio, quando o sol quebrantava a sua fúria no
horizonte, haver inúmeros magotes de gente sentados ou dependurados nas grades.
Havia homens bem-nascidos, impassíveis, de olhar altivo proferindo curtos
comentários, perante o olhar submisso de outros menos afortunados. Havia
aldeões que, numa carreira descontrolada, com o saco da merenda a tiracolo
ainda enlambuzado, com as sobras das “pantaniscas” mercadas na taberna do
Seguro, procuravam a trouxe-mouxe a camioneta da carreira que os levariam para
a aldeia.
Havia doidos que de órbitas descarnadas e olhos esgargalados
parecendo ovos cosidos saltitantes das concavidades se divertiam divertindo
quem passava e, pobres esfomeados que de joelhos na berma da estrada, pediam
aos transeuntes alguns tostões para a mãe entrevada.
Subindo a serra da forca, ao lado esquerdo, ficava a igreja
de Sto. António, antigo convento Dominicano construído no século XVII, aquando
da contra-reforma. A decoração interior está repleta de motivos orientais,
talvez trazidos pelos Jesuítas das suas longas viagens de cristianização pela
Ásia: aves exóticas, parreiras…Era aqui que os Jesuítas manobravam a população
com promessas irreais e do outro mundo, fazendo à turba esquecer “que se está
mais perto da realidade no bordel que no convento” .
Atingido o cume da serra deparamos com o antigo colégio de
Nª Sª do Incenso, altivo e imponente na sua fealdade, mão dada com a mata e o
campo de futebol, olhando majestoso a vila curvada a seus pés. O envolvente era
partilhado pela mata densamente arborizada de carvalhos e pinheiros, enlaçados
na base, por uma quantidade infinita de arbustos. O odor resinoso e balsâmico
do ládano, misturado com o suave aroma dos rosmaninhos, perfumava o espaço
colorido pelas urzes e pelas giestas num caleidoscópio de cores. Os esguios
caminhos, bordejados por um sem número de pilriteiros floridos e envoltos num
secretismo secular, guardam, ainda hoje, no seu silêncio vegetativo inúmeras
confidências de jovens apaixonados. O campo de futebol, empoleirado no cimo do
morro, desprotegido e lavado na nudez que o caracterizava, identificava-se
pelas balizas oxidadas e carcomidas pelo tempo, bem como pelas runas que as
intempéries nele iam desenhando…”
João Filipe in “Eram Dias De Cem Anos”
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