segunda-feira, 1 de junho de 2015

AS CASAS DA MINHA ALDEIA

Numa clareira das encostas a sul da serra da Malcata ergue-se parecendo emprestar-se segurança e equilíbrio, a aldeia onde eu nasci, num amontoado de telhas, observado de uma certa distância dá a sensação de um confuso emaranhamento de construções enegrecidas cujos contornos se fundem nas névoas. As telhas corroídas de musgos e líquenes pareciam estar embebidas de milhares de gotículas de água irisando ao sol sob um imenso manto de feltro
O pátio da minha casa reflectia a pouca luminosidade diurna sob um céu opressivo e cor de chumbo. Abri a porta de entrada da casa e respirei o interior, abrindo as narinas com uma intensidade desmedida e insaciável para receber aqueles eflúvios esquecidos e tão depressa reconhecidos, flutuantes, indistintos, impossíveis de analisar que emanavam ao mesmo tempo da pintura dos móveis e da casa em geral.



João Filipe in “ Velhos são os Trapos”
O BOM FANTASMA

Chamo-me Petrus, “Lusitanus”, contemporâneo de Jesus “Nazarenus” aquele que muitos de vós acreditam ser o Salvador. Sou filho de Nix e de Gaia e neto de Kaos . As razões da minha já tão longa existência? Contentai-vos por agora, se vos disser que não ando por meu mal e que não ambulo para vos fazer mal, vagueio por um capricho divino.
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Acamado, o Ti Manel continuava isolado e fechado às sete chaves na sua casa sem janelas, ouvindo-se na rua os vagados sincopados da sua respiração, entremeado de um arrazoado delirante e inexpressivo. Nunca tinha ousado entrar naquela casa. Ponderei a minha decisão quando o solilóquio se tornou deveras aflitivo e febril, considerando o pior, entrei. O negro, negro do cubículo toldou-me a minha supervisão de fantasma, permanecendo alguns minutos encostado à parede até me aclimatar ao escuro. Pouco a pouco identifiquei á direita; uma mesa quadrada de sensivelmente um metro de lado protegida por um oleado de desenhos quadriculares e de várias cores fixo ao tampo por brochas douradas junto à bainha e, em cima, uma marmita do resto do jantar talvez deixado pelas meninas do lar, à esquerda e encostada à parede uma tarimba onde se lobrigava um rosto qual cabeça de abutre; careca de uma cor enfezada e macilenta, os olhos embatucados nas órbitas escuras e descomunais, o nariz adunco e em forma de foice, poisava na boca desdentada sobre um queixo retraído.
Quando se apercebeu da minha presença endireitou o busto seco de pássaro, esgargalou os olhos abrindo desmesuradamente a boca e voltando a cair na enxerga, como possuído pelo demónio encetou uma serie de urros em tons inusitadas e incomuns, tentei acalma-lo, parecia possesso. Apressadamente, retirei-me e saí.
Minutos depois os vizinhos alvoroçados pela gritaria e temendo pela saúde do ti Manel, arrombaram a porta e entraram, direccionando a candeia para o doente postado contra a parede branquinho como a cal dizendo ter visto um intruso que o queria matar. Tentaram aquieta-lo, mas ele ansioso e febril repetia engasulado:
- É o Demónio. Os Porco-sujo… (repetia olhando em todas as direcções) Ajudem-me.
Quantas não são as vezes que os seres humanos ou não, agem por bem, no intuito de ajudar e são desavindos e mal interpretados. Porque será que um desconhecido terá que à partida ser mau? Porque é incomum? E tu? Sim tu aí recostado no sofá que apoia tudo e todos e se compadece de tudo o que passa na televisão. Será que só estais habituados a uma lógica cíclica e regular das coisas? Talvez. Sois infelizes mas acomodados.


João Filipe ln “As Avós da Minha Terra”

domingo, 31 de maio de 2015

O REVOLUCIONÁRIO

O Pipas, do Vale de Lobo (Vale da Senhora da Póvoa), media aproximadamente 1,80m de altura, era corpulento e espadaúdo, com braços curtos mas grossos terminando nuns punhos extraordinários. Era de um vigor e tenacidade alarmantes, o cabelo ruivo acentuava-lhe a cor de cenourinha do rosto pintalgado, os olhos de um verde muito claro, descansando sobre um nariz forte e escarlate, alternavam para azul consoante a luminosidade e dos lábios finos e risonhos, prendia um queixo minúsculo mas sólido. A alcunha proveio-lhe talvez pelo excesso de “Pês” no nome, ou, quiçá, pela sua grande apetência por bebidas alcoólicas. Era médio-centro, fazendo assim jus à agressividade que ostentava e tinha um carácter pouco dado a derrotas mesmo consumadas, raramente as aceitava. Tinha também um cunho brigão e rezingão, estando quase sempre contra tudo e contra todos. Hoje vive em Lisboa, é solteiro, tendo já visitado várias vezes a prisão por insurreições políticas e sociais, provocadas em bares nocturnos a altas horas da madrugada. Creio tê-lo visto há alguns anos. Estava igual, um eterno descontente.
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Santa Apolónia, sete e trinta da manhã. Pedro esperava pacientemente na fila a sua vez para comprar um ingresso no comboio rápido que ligava Lisboa a Castelo Branco. Após ter adquirido o bilhete, carregou o saco de viagem pejado de algumas mudas de roupa e, aligeirando a passada, entrou no cais de embarque, escutando os altifalantes que, numa voz fina e melodiosa, anunciavam: “Os Senhores Passageiros que, desejarem viajar no comboio rápido que liga Lisboa-Sta. Apolónia a Castelo Branco, é favor dirigirem-se à linha número um e tomarem os seus lugares. O comboio parte dentro de momentos.”
Pedro mal se lembrava da última vez que tinha usado o comboio e não fosse a GNR ter-lhe confiscado a carta de condução por conduta perigosa e criminal (estado avançado de embriaguez e ofensas aos agente de autoridade), não seria ainda desta. Escolheu uma carruagem de segunda classe, subiu os degraus de acesso e continuou pelo corredor interno, espreitando os compartimentos de forma a escolher o menos ocupado, enquanto o comboio em silvos estridentes anunciava a sua partida. Entrou numa divisão ocupada por dois passageiros – um idoso sentado perto da porta e uma jovem aparentando ter uns vinte anos – num dos lados da janela. Pediu licença e, cumprimentando os ocupantes, sentou-se do outro lado, em frente à adolescente.
No nonagenário, as órbitas avultavam profundas do rosto seco e mirrado, como duas cavas e cavernosas crateras, num sem fundo encarvoado sobre uma calvície quase total, não fossem alguns pêlos insurrectos que teimosamente tentavam cobrir-lhe os lóbulos das orelhas. Observava numa inconstância ritmada provocada pelos solavancos do comboio o que se passava no corredor, mantendo o queixo mirrado, descaído, desvendando o interior da boca desprovida de defesas, sob um nariz fino e adunco.
A jovem, de olhar fixo na corrida desenfreada da paisagem, era altiva e imbuída de uma palidez nórdica, cabelo loiro, muito abundante e caprichosamente ondulado, e pele bem tisnada pelo sol. O rosto apresentava uma requintada serenidade, com um nariz algo aquilino e de narinas bem desenhadas, o lábio superior era curto e magnífico na sua curva e assentava levemente no lábio inferior, deixando espreitar os alvos dentes que reflectiam o mais ínfimo raio solar.
Pedro deleitava-se mirando a jovem mulher, recordando os tempos da revolução e o seu engajamento nas FP25, os medos e as revoltas, os sobressaltos de conjecturar polícias à paisana em todos os cidadãos. Rememorava tempos difíceis e angustiantes, de reuniões clandestinas, viagens a Sintra em comboio atulhados de gente, lembrava-se dos fortuitos encontros familiares e esporádicos, de baixar os olhos e quando os baixava sofria, mas evitava intimidades e possíveis represálias de vigias, semeados e vulgarizados na mole humana. Revia os valhacoutos abstrusos e secretos, dissimulados em chavascais recônditos e escusos, onde se reunia com camaradas de luta, inventando e glorificando governos da classe proletária e, nestas cogitações e reflexões, o comboio sibilou estrepitosamente anunciando a paragem seguinte.

João Filipe 

“Velhos são Os Trapos”

domingo, 19 de abril de 2015

CHICO MALTÊS


Seco e zangado, o outono surgiu fazendo os seus desvarios e o plantio nos vergéis desnudados deixava transparecer o seu estado de espírito, num esbracejar contínuo de mil ramos e de mil bocas, ululantes e indispostas.
Descontentes os olivais protestavam, desprendendo a custo, tristes e lacrimosos a azeitona verde na sua prematura criação, enquanto os aldeões pediam clemência aos espíritos, com promessas de novenas, procissões e martírios corporais.
O Chico Maltês, era um quarentão, feio e doentio, peito curvo como o de uma ave, cabeça calva, o pescoço magro, o nariz proeminente e caído em ar de foice, parecendo um abutre, era pessoa desavinda e malquista na aldeia mas, nestas alturas em que as forças da natureza se manifestavam assanhadas e enfurecidas insurgia-se, levantando os braços e com a voz rouca e bafienta clamava:
- Só a Santa Marta, nos pode salvar destes ventos demoníacos que, nos destoem as colheitas e nos impedem de malhar o pão. Povo da terra! Façamos uma procissão ao mudar da lua e roguemos-lhe que acalme estes vendavais.
Pouco dado a estas práticas, o padre aceitava-as mas recusava-se a participar, alegando serem desaprovadas pelo bispo. Assim sem oposição directa do prior, ”o Maltês” ajudado por um grupo reduzido de acólitos, subiram a serra íngreme e alcantilada, retiraram a imagem do nicho, trazendo-a para a entrada da aldeia, perante a receptividade das gentes do povoado.
A mole engrossava, ressurgindo da noite, ávida de milagres, empunhando velas tremeluzentes, quais testemunhos de fé e identificando-se com o todo-poderoso. Lentamente, o novelo cintilante começava desenrolar-se em direcção ao povoado; qual monstro flagelado.
 Perante tal espectáculo, o vento, irado, soprava e silvava por tudo onde era sítio e, os seus roncos desbragados eram tónico para os penitentes que, exorcizavam o medo entoando cânticos à santa milagreira.
A procissão, encabeçada pelo Maltês, que ia segurando bem alto e entre as mãos, a imagem da santinha, apelava febrilmente à oração, chegando  por fim ao adro da Igreja onde se desmanchou num manto cintilante parecendo querer abraçar a Igreja que de portas abertas mostrava a nave iluminada, reflectindo o barroco num “arco-íris” flamejante.
Hirto e à frente da populaça entrou na Igreja, segurando a imagem entre as mãos, as mesmas tantas vezes usadas para pilhar galinhas, ou, com blandícias de pervertido acariciar crianças desprotegidas. Devagar, muito devagar e em tom de ritual subiu a coxia, expondo a Santinha num altar lateral.
Ana convicta e confessa nos poderes de Maria acompanhou até ao fim o cerimonial, enquanto o João, seu marido, avesso a estes ritos, deambulava pelas tabernas perpetuando velhos hábitos, regressando a casa já altas horas da madrugada. Resmungando, batia com as portas e criticava a mulher e todos os outros basbaques, pelas suas crenças e serem comandados por um filha-da-puta, sedutor de crianças.
Perante tamanha animosidade. Em vão Ana tentou esboçar algumas reacções, no sentido de acalmar a ira do marido.
- Cala-te ranhosa de merda, sois todas umas putas… o que  quereis é folguedo, mas descansa, grande vadia, a festança vem a caminho, mais rápido do que julgas.
Foi o princípio de um longo calvário, prenhe de dor e de lágrimas. O estigma da família estava reaberto e a chaga tinha renascido.
Adivinhavam-se tempos de cólera.



João Filipe

sábado, 18 de abril de 2015

Zé Catrino

Nos princípios do século XX, a Benquerença era uma aldeia opulenta e prospera sendo a agricultura a base de toda a riqueza e a terra era o bem indissociável, para almejar a tal fortuna e a consequente felicidade terrena. Então, enquanto nas famílias ricas havia pouca descendência para evitar a partilha da terra e os casamentos eram por norma combinados ou efectuados com familiares directos, nas famílias pouco abastadas tendiam a ter o maior número de filhos, fosse por completo desconhecimento de planeamento familiar, ou, por ser sinónimo de mais braços de trabalho e mais meios angariadores de sustento para o clã nas terras senhoriais.
Não sendo João Catarino um grande senhor era sem sombra de dúvida, um agricultor bastante abastado tendo como único filho, um pimpolho algo diminuído quer psique, quer fisicamente.
 Zé Catarino assim se chamava o rapaz era iletrado, feio e doentio, pouco dado ao convívio, de olhar esbranquiçado e patético, de peito decaído parecendo arrastar-se de mão dada com a morte. Em suma, um alvo fácil à cobiça de mulheres mundanas.
Após a morte dos pais, Ana mulher esperta e de trato fácil, viu no Zé a bóia de salvação para a sua vida, até então mal gerida e destrambelhada, fosse como garantia de sustento e estabilidade económica, ou, talvez o mais importante, forma de dar um apelido à sua filha, fruto de uma fortuita e desleixada relação amorosa tida, com um eloquente moinante que volvido pouco tempo a abandonou.   
Assim começou por rondar-lhe a porta, confidenciando-lhe que com a morte dos pais, a sua vida sozinho seria um inferno e que, não há melhor ter que ter uma mulher que o acarinhe e aconchegue. Às primeiras abordagens não foi muito convincente, o Zé Catarino, era muito pouco social, mas a troco de uns miminhos e alguns caldinhos quentes, lá convenceu o pobre do Zé.
Marcados os esponsais era feita a examina pelo prior da aldeia, sobre os conhecimentos gerais dos nubentes, sobre a religião Cristã nas antevésperas do casamento.
Esse dia tinha acabado de chegar. O Zé Catarino nervoso, não sabia o que fazer, quanto mais o que dizer ao prior, tão raras tinham sido as vezes que tinha ido à missa e a hora da examina estava prestes.  Respirou fundo, tomou coragem e lá partiu para a igreja.
- Senta-te Zé! Vieste à examina?
Perguntou o padre, enquanto arrumava os paramentos num gavetão na sacristia.
Apavorado e encagaçado que estava obedeceu como um autómato sentando-se, bem na fímbria da cadeira
-Vim sim senhor prior
Vamos lá então. Queres-te casar com a Ana no próximo sábado?
- É sim senhor Prior.
- Gosta dela?
- Gosto sim senhor Prior
-Não estás a pensar fazer, o que outros já fizeram com ela?
-Nada não senhor Prior
-Muito bem Zé. Vamos lá então à examina: quantas são as pessoas da Santíssima Trindade?
Disse o padre girando em torno da cadeira, onde o Zé sentado o seguia pelo rabo do olho, quando torneando-o por detrás se quedou a seu lado pousando-lhe a mão gorda e sebosa no ombro direito aguardando a resposta - Estou à espera - Pungente, demandou uma voz invisível e aborrecida do alto da sua cabeça e sentida, pelo calor abrasador da mão espaparrada no ombro e a medo tartamudeou:
- São dez!
Foram breves, mas pareceram infindáveis os instantes de a voz aparentar ter sumido e haver deixado a mão.   
- Se não são dez, são vinte… ou talvez trinta.
Respondeu o Zé desacorçoado, com aquela afoiteza extemporânea própria dos pusilânimes, quando a voz ganhando corpo e aparecendo do nada se plantou á sua frente guinchando:
- Amanhã quero-te aqui á mesma hora com as respostas na ponta da língua, senão…adeus Ana e adeus boda!
A voz, adquirida forma no corpo do prior arredondado pela batina soou aos ouvidos do examinado, qual trovão tonitruante, assustado e a medo levantou-se pediu a bênção e retirou-se coxia abaixo, absorto e alheado a tudo, quando alguém o chamou e o trouxe à realidade:
- Boa noite Zé.
- Ora boa noite. Viva lá.
- Vens da examina? – Questionou o rapaz acabado de chegar e que respeitosamente se descobria, para dar entrada na igreja e ele também ser examinado pelo abade – o que te perguntou o Sr. Prior?
- Quantas eram as pessoas da Santíssima Trindade?
- Essa era canja! São três: Pai, Filho e Espirito Santo.
- Vai lá com três, vai… Olha que eu arrimei-lhe com trinta e não se satisfez, ficou pior que um touro bravio e mandou-me cá vir amanhã.
Terminados os esponsais Ana foi breve em mudar os seus há-de-haveres para a sua nova residência e tomar conta da casa e das pertenças do marido que invariavelmente continuava a rotina de trabalho, já antes efectuada; levantava-se de manhã bem cedo, pegava na ferrada do leite e encaminhava-se para a quinta da tchiquêras (assim se chamava o lugar, porque em tempos por ali tinha lavrado um grande incêndio e as oliveiras que ali se encontravam foram chamuscadas e abrasadas, mais tarde para proteger os rebentos da voracidade das cabras foi lhe feito um cerco em madeira parecido aos tchequêros: lugar onde se guardam os cabritos a desmamar) onde pastoreava até ao anoitecer uma grande cabrada.
Após o e casamento a sua relação com a esposa foi-se degradando de a ano para ano, mas era-lhe permitido pernoitar na habitação, tempos, mais tarde, pela calada da noite ouvia-se o tique-taque dos tamancos na calçada de cascalho da ribeira era o Zé que chegava, com os seus sempre habituais safões de pele de vitela, ferrada do leite na mão, para parcas horas depois regressar á quinta e pernoitar sozinho, no desconchego da choça.


João Filipe                 

sábado, 21 de março de 2015

David Tomé



Nos meados do século XX vivia na Bemposta um guarda-republicano reformado, homem atarracado e bonacheirão de voz arrastada e temporizada, aparentando tal como a aldeia, ciente e orgulhosa do seu passado, de não ligar à passagem do tempo.
O Ti David Tomé era pessoa de conversa fácil e despreocupada convivia com todos e bastava um “bom-dia” ou uma “boa-tarde”, para a todos revelar o seu estado de alma. Conhecido como era de caracter pandego e folgazão, as romarias da região eram por ele calcorreadas na companhia do burro, do cão e da concertina, elementos indispensáveis das suas jornadas.
O Ti David Tomé, pouco ou nada fazia já que a sua pensão de reformado da GNR, chegava-lhe e bastava para viver mais a esposa com quem tinha casado em segundas núpcias, passando o seu tempo sentado à soleira da porta e nas vésperas das festas conhecido como era de grande romeiro as perguntas eram óbvias.
– Boa tarde Ti David, então como vai?
– Cá vamos indo como Deus quer, não fosse esta maldita gota que me derreia aqui as ancas… Disse, endireitando-se e apalpando com as duas mãos os quadris.
– Sabe, é do tempo.
– É bem capaz – suspirou com queixumes. – Este maldito tempo está vário.
Estou a vê-lo tão sossegado. Não vai à Santa Luzia?
Como quem necessitasse de ponderar a resposta, o Ti David demorou alguns instantes a responder, entretido que estava a afiar a navalha, numa pedra abrasiva que por ali tinha encontrado.
- Ná – maneando a cabeça – na vou. Ando de mal com a Santa Luzia.
- Anda de mal com a Santa Luzia? Não me diga! Então porquê?
O Ti David tinha uma ligação muito próxima quase profana, de amor-ódio com estas divindades.
- O ano passado fomos lá, eu a burra e o “fadista”, chovia que Deus a mandava e quando tentamos abrigar-nos num caramanchão perto da estrada fiquei preso num silvado e caí da burra, enlameei o fato todo.
- Mas a Santa Luzia não teve culpa. Ou teve?
- Culpa não teve, mas era obrigação dela proteger-me para não cair.
Respondeu algo desavindo e indisposto.
- Mas anda zangado com todas.
Resposta pronta.
- Não! Gosto muito de ir à Senhora do Almurtão e à Senhora da Póvoa, à primeira; porque tem lá um prado ao pé da capela e encho lá a barriga à burra, à segunda porque depois da missa pego na minha “sanfona” e armo lá um balho que nem te conto. 
Outra vez que por ali passei, estava o Ti David fruindo e saboreando refastelado os restos de uma merenda bem anafada quando o questionei.
- Boa tarde Ti David que belo manjar aí tem.
- Senta-te daí, come e dá uma gaitada na borracha.
Na época, quase todos os raianos que se prezavam usavam uma borracha de couro espanhola para beberem o vinho, fazendo do acto de beber um verdadeiro ritual: prendiam a borracha com o cordão a uma das mãos e com a outra pressionavam-na, enquanto iam esticando os braços simultaneamente para a frente e para cima, até que obtivessem um espicho de vinho de relativa espectacularidade. Não sendo eu nenhum experto peguei na borracha e ensaiei o ritual, salvo algumas lágrimas de vinho que me borrifaram a cara, consegui beber uma quantidade assinalável de vinho.
- São as sobras do casamento novo.
- Já sei que voltou a casar.
- É a vida. A minha primeira mulher já morreu há algum tempo apesar das promessas de novenas e ir a pé à Senhora de Fátima, e ter prometido e empatado um cordão se ela ficasse boa, mas a Senhora de Fátima assim não quis. É uma Senhora rica, tem lá muitos padres e muitos devotos e talvez achasse a minha oferenda muito pobrezinha. Fiquei de mal com ela.
- Tenho de ir andando. Bem-haja pela pinga e boa sorte com a sua presente mulher.

- Vai com Deus rapaz.       

sábado, 7 de março de 2015

CONVERSAS NA TABERNA
Lá fora, o vento zurzia seco e zangado, fazendo os seus desvarios e nos chãos, o plantio desnudado deixava transparecer o seu estado de espírito, num esbracejar contínuo de mil ramos e de mil bocas, ululantes e indispostas.
Na taberna entre os agricultores, o desânimo era visível e partilhado por todos:
- Se não caiem umas pingas de água, e não se cala o cabrão deste vento, este ano à que vai ser… 
Diziam os mais cépticos e incrédulos.
Quando, como por magia a televisão captou a atenção de todos. O noticiário de um canal informava; Sabe-se agora que, entre 2002 e 2007, Pedro Passos Coelho foi alvo de, pelo menos, cinco processos de contra-ordenação e de execução fiscal.
E pelos valores em causa, diz o jornal Público, as falhas não podem ser relativas a atrasos de entrega de declarações. O primeiro-ministro admitiu problemas na carreira fiscal.
- Já viram estes gajos, só pagam se querem quando querem, enquanto a nós, nos esbulham até ao último tostão.
Entre as classes menos afortunadas uma mensagem negativa do país ou estranha ao seu pequeno mundo restrito à região, pode por momentos servir de analgésico, perante as dores prementes e visíveis do dia-a-dia
- Sabes pá, é que os burros hoje. já não dão os coices da mesma maneira.
João Filipe
CONVERSAS SEM SENTIDO
Na minha terra findos os “entardeceres”, a noite não vem das montanhas, mas emerge devagar das tocas e das grutas tomando paulatinamente conta da serra, embrulhando a aldeia numa obscuridade desbotada.
Entrei em casa, a penumbra retinha o interior numa quietude sepulcral, e o odor subtil de uma presença feminina, parecia ainda subsistir nas pétalas das flores dispersas nos solitários. Ilusão ou reminiscência de outros tempos? Não sei. O meu desejo é que me aconteça algo de imprevisto, pois decidi-me por aquilo que, ironicamente designo de, “tirar férias da vida” por uns dias, ou, talvez por umas semanas. Se quiserem saber como vivo quando estou sozinho, o que vos posso dizer, é que, de noite com o quarto às escuras e os vidros iluminados da janela pela luz difusa vinda do exterior, permitem-me ver a sala onde os meus pensamentos, depois de usados, ali ficam sentados, macambúzios, e aborregados, tal qual os fregueses, na sala de espera de um mau advogado, sem resposta e constrangidos na impossibilidade de saberem se os tempo actuais, não serão o advento de uma nova era.
João Filipe
OS POLÍTICOS DA NOSSA PRAÇA
Essas estórias das sondagens, sobre a popularidade dos políticos são algo, como se diz lá prás minhas bandas, coisas “de carregar pela boca”.
Sensivelmente há uns três meses desta parte com o caso “Sócrates”, a família PS e os seus apaniguados viram-se em maus lençóis e em papos de aranha e a prisão” de Évora tornou-se um lugar de romaria - o homem está inocente - gritavam uns, enquanto outros vociferavam - isto é uma cabala, um atentado á democracia -, persuadindo e induzindo a população que o preso nº 44 era um santinho, isento de qualquer mácula. As sondagens baixaram a pique na popularidade da “pandilha” socialista, dando lugar à aproximação dos neoliberais que andavam pelas ruas da amargura.
Passado este tempo rebentou a bomba do “nosso” primeiro Passos, o raio do homem quando era deputado esqueceu-se, ou talvez não soubesse que era preciso pagar impostos. Estragou tudo. - Tanto trabalhinho para nada - confidenciavam uns, enquanto outros ciciavam – e agora como vai ser? -.Reviravolta nas sondagens, o nosso primeiro meteu a pata na poça, e a bandalha neoliberal teve um ataque de coração, perante o ressurgimento dos socialistas.
Contrariamente ao que os políticos afirmam e fazem disso, um imperativo categórico nos seus eloquentes comícios; “o povo é soberano” “o povo nunca esquece”. Uma óva, se o “ “povão” (permitam-me que use este brasileirismo, porque ao contrário do que um amigo meu afirma que a sociedade se divide em duas classes; nobreza e povo eu continuo a acreditar que se divide em três a saber; nobreza “ bancários, políticos, e juízes” , povo “essa anteriormente dita classe média”, e o povão “números, unidades que contam quase exclusivamente para as sondagens sem direitos alguns”) nunca se esquecesse, já se tinha certificado que, desde 1974 até aos tempos de hoje o erário público nunca parou de descer e, já se teria apercebido que o ´´únicos que mexiam e mexem no pote são sempre os mesmos, PS e PSD.
João Filipe