Zé Catrino
Nos princípios do
século XX, a Benquerença era uma aldeia opulenta e prospera sendo a agricultura
a base de toda a riqueza e a terra era o bem indissociável, para almejar a tal
fortuna e a consequente felicidade terrena. Então, enquanto nas famílias ricas
havia pouca descendência para evitar a partilha da terra e os casamentos eram
por norma combinados ou efectuados com familiares directos, nas famílias pouco
abastadas tendiam a ter o maior número de filhos, fosse por completo
desconhecimento de planeamento familiar, ou, por ser sinónimo de mais braços de
trabalho e mais meios angariadores de sustento para o clã nas terras
senhoriais.
Não sendo João Catarino
um grande senhor era sem sombra de dúvida, um agricultor bastante abastado
tendo como único filho, um pimpolho algo diminuído quer psique, quer
fisicamente.
Zé Catarino assim se chamava o rapaz era
iletrado, feio e doentio, pouco dado ao convívio, de olhar esbranquiçado e
patético, de peito decaído parecendo arrastar-se de mão dada com a morte. Em
suma, um alvo fácil à cobiça de mulheres mundanas.
Após a morte dos pais, Ana
mulher esperta e de trato fácil, viu no Zé a bóia de salvação para a sua vida,
até então mal gerida e destrambelhada, fosse como garantia de sustento e
estabilidade económica, ou, talvez o mais importante, forma de dar um apelido à
sua filha, fruto de uma fortuita e desleixada relação amorosa tida, com um
eloquente moinante que volvido pouco tempo a abandonou.
Assim começou por
rondar-lhe a porta, confidenciando-lhe que com a morte dos pais, a sua vida
sozinho seria um inferno e que, não há melhor ter que ter uma mulher que o
acarinhe e aconchegue. Às primeiras abordagens não foi muito convincente, o Zé
Catarino, era muito pouco social, mas a troco de uns miminhos e alguns
caldinhos quentes, lá convenceu o pobre do Zé.
Marcados os esponsais
era feita a examina pelo prior da aldeia, sobre os conhecimentos gerais dos
nubentes, sobre a religião Cristã nas antevésperas do casamento.
Esse dia tinha acabado
de chegar. O Zé Catarino nervoso, não sabia o que fazer, quanto mais o que
dizer ao prior, tão raras tinham sido as vezes que tinha ido à missa e a hora
da examina estava prestes. Respirou
fundo, tomou coragem e lá partiu para a igreja.
- Senta-te Zé! Vieste à
examina?
Perguntou o padre,
enquanto arrumava os paramentos num gavetão na sacristia.
Apavorado e encagaçado
que estava obedeceu como um autómato sentando-se, bem na fímbria da cadeira
-Vim sim senhor prior
Vamos lá então.
Queres-te casar com a Ana no próximo sábado?
- É sim senhor Prior.
- Gosta dela?
- Gosto sim senhor
Prior
-Não estás a pensar fazer,
o que outros já fizeram com ela?
-Nada não senhor Prior
-Muito bem Zé. Vamos lá
então à examina: quantas são as pessoas da Santíssima Trindade?
Disse o padre girando
em torno da cadeira, onde o Zé sentado o seguia pelo rabo do olho, quando
torneando-o por detrás se quedou a seu lado pousando-lhe a mão gorda e sebosa
no ombro direito aguardando a resposta - Estou à espera - Pungente, demandou
uma voz invisível e aborrecida do alto da sua cabeça e sentida, pelo calor
abrasador da mão espaparrada no ombro e a medo tartamudeou:
- São dez!
Foram breves, mas pareceram
infindáveis os instantes de a voz aparentar ter sumido e haver deixado a mão.
- Se não são dez, são
vinte… ou talvez trinta.
Respondeu o Zé
desacorçoado, com aquela afoiteza extemporânea própria dos pusilânimes, quando
a voz ganhando corpo e aparecendo do nada se plantou á sua frente guinchando:
- Amanhã quero-te aqui
á mesma hora com as respostas na ponta da língua, senão…adeus Ana e adeus boda!
A voz, adquirida forma
no corpo do prior arredondado pela batina soou aos ouvidos do examinado, qual
trovão tonitruante, assustado e a medo levantou-se pediu a bênção e retirou-se coxia
abaixo, absorto e alheado a tudo, quando alguém o chamou e o trouxe à
realidade:
- Boa noite Zé.
- Ora boa noite. Viva
lá.
- Vens da examina? – Questionou
o rapaz acabado de chegar e que respeitosamente se descobria, para dar entrada
na igreja e ele também ser examinado pelo abade – o que te perguntou o Sr.
Prior?
- Quantas eram as
pessoas da Santíssima Trindade?
- Essa era canja! São três:
Pai, Filho e Espirito Santo.
- Vai lá com três, vai…
Olha que eu arrimei-lhe com trinta e não se satisfez, ficou pior que um touro bravio
e mandou-me cá vir amanhã.
Terminados os esponsais
Ana foi breve em mudar os seus há-de-haveres para a sua nova residência e tomar
conta da casa e das pertenças do marido que invariavelmente continuava a rotina
de trabalho, já antes efectuada; levantava-se de manhã bem cedo, pegava na
ferrada do leite e encaminhava-se para a quinta da tchiquêras (assim se chamava
o lugar, porque em tempos por ali tinha lavrado um grande incêndio e as
oliveiras que ali se encontravam foram chamuscadas e abrasadas, mais tarde para
proteger os rebentos da voracidade das cabras foi lhe feito um cerco em madeira
parecido aos tchequêros: lugar onde se guardam os cabritos a desmamar) onde
pastoreava até ao anoitecer uma grande cabrada.
Após o e casamento a
sua relação com a esposa foi-se degradando de a ano para ano, mas era-lhe
permitido pernoitar na habitação, tempos, mais tarde, pela calada da noite
ouvia-se o tique-taque dos tamancos na calçada de cascalho da ribeira era o Zé
que chegava, com os seus sempre habituais safões de pele de vitela, ferrada do
leite na mão, para parcas horas depois regressar á quinta e pernoitar sozinho,
no desconchego da choça.
João Filipe