sábado, 18 de abril de 2015

Zé Catrino

Nos princípios do século XX, a Benquerença era uma aldeia opulenta e prospera sendo a agricultura a base de toda a riqueza e a terra era o bem indissociável, para almejar a tal fortuna e a consequente felicidade terrena. Então, enquanto nas famílias ricas havia pouca descendência para evitar a partilha da terra e os casamentos eram por norma combinados ou efectuados com familiares directos, nas famílias pouco abastadas tendiam a ter o maior número de filhos, fosse por completo desconhecimento de planeamento familiar, ou, por ser sinónimo de mais braços de trabalho e mais meios angariadores de sustento para o clã nas terras senhoriais.
Não sendo João Catarino um grande senhor era sem sombra de dúvida, um agricultor bastante abastado tendo como único filho, um pimpolho algo diminuído quer psique, quer fisicamente.
 Zé Catarino assim se chamava o rapaz era iletrado, feio e doentio, pouco dado ao convívio, de olhar esbranquiçado e patético, de peito decaído parecendo arrastar-se de mão dada com a morte. Em suma, um alvo fácil à cobiça de mulheres mundanas.
Após a morte dos pais, Ana mulher esperta e de trato fácil, viu no Zé a bóia de salvação para a sua vida, até então mal gerida e destrambelhada, fosse como garantia de sustento e estabilidade económica, ou, talvez o mais importante, forma de dar um apelido à sua filha, fruto de uma fortuita e desleixada relação amorosa tida, com um eloquente moinante que volvido pouco tempo a abandonou.   
Assim começou por rondar-lhe a porta, confidenciando-lhe que com a morte dos pais, a sua vida sozinho seria um inferno e que, não há melhor ter que ter uma mulher que o acarinhe e aconchegue. Às primeiras abordagens não foi muito convincente, o Zé Catarino, era muito pouco social, mas a troco de uns miminhos e alguns caldinhos quentes, lá convenceu o pobre do Zé.
Marcados os esponsais era feita a examina pelo prior da aldeia, sobre os conhecimentos gerais dos nubentes, sobre a religião Cristã nas antevésperas do casamento.
Esse dia tinha acabado de chegar. O Zé Catarino nervoso, não sabia o que fazer, quanto mais o que dizer ao prior, tão raras tinham sido as vezes que tinha ido à missa e a hora da examina estava prestes.  Respirou fundo, tomou coragem e lá partiu para a igreja.
- Senta-te Zé! Vieste à examina?
Perguntou o padre, enquanto arrumava os paramentos num gavetão na sacristia.
Apavorado e encagaçado que estava obedeceu como um autómato sentando-se, bem na fímbria da cadeira
-Vim sim senhor prior
Vamos lá então. Queres-te casar com a Ana no próximo sábado?
- É sim senhor Prior.
- Gosta dela?
- Gosto sim senhor Prior
-Não estás a pensar fazer, o que outros já fizeram com ela?
-Nada não senhor Prior
-Muito bem Zé. Vamos lá então à examina: quantas são as pessoas da Santíssima Trindade?
Disse o padre girando em torno da cadeira, onde o Zé sentado o seguia pelo rabo do olho, quando torneando-o por detrás se quedou a seu lado pousando-lhe a mão gorda e sebosa no ombro direito aguardando a resposta - Estou à espera - Pungente, demandou uma voz invisível e aborrecida do alto da sua cabeça e sentida, pelo calor abrasador da mão espaparrada no ombro e a medo tartamudeou:
- São dez!
Foram breves, mas pareceram infindáveis os instantes de a voz aparentar ter sumido e haver deixado a mão.   
- Se não são dez, são vinte… ou talvez trinta.
Respondeu o Zé desacorçoado, com aquela afoiteza extemporânea própria dos pusilânimes, quando a voz ganhando corpo e aparecendo do nada se plantou á sua frente guinchando:
- Amanhã quero-te aqui á mesma hora com as respostas na ponta da língua, senão…adeus Ana e adeus boda!
A voz, adquirida forma no corpo do prior arredondado pela batina soou aos ouvidos do examinado, qual trovão tonitruante, assustado e a medo levantou-se pediu a bênção e retirou-se coxia abaixo, absorto e alheado a tudo, quando alguém o chamou e o trouxe à realidade:
- Boa noite Zé.
- Ora boa noite. Viva lá.
- Vens da examina? – Questionou o rapaz acabado de chegar e que respeitosamente se descobria, para dar entrada na igreja e ele também ser examinado pelo abade – o que te perguntou o Sr. Prior?
- Quantas eram as pessoas da Santíssima Trindade?
- Essa era canja! São três: Pai, Filho e Espirito Santo.
- Vai lá com três, vai… Olha que eu arrimei-lhe com trinta e não se satisfez, ficou pior que um touro bravio e mandou-me cá vir amanhã.
Terminados os esponsais Ana foi breve em mudar os seus há-de-haveres para a sua nova residência e tomar conta da casa e das pertenças do marido que invariavelmente continuava a rotina de trabalho, já antes efectuada; levantava-se de manhã bem cedo, pegava na ferrada do leite e encaminhava-se para a quinta da tchiquêras (assim se chamava o lugar, porque em tempos por ali tinha lavrado um grande incêndio e as oliveiras que ali se encontravam foram chamuscadas e abrasadas, mais tarde para proteger os rebentos da voracidade das cabras foi lhe feito um cerco em madeira parecido aos tchequêros: lugar onde se guardam os cabritos a desmamar) onde pastoreava até ao anoitecer uma grande cabrada.
Após o e casamento a sua relação com a esposa foi-se degradando de a ano para ano, mas era-lhe permitido pernoitar na habitação, tempos, mais tarde, pela calada da noite ouvia-se o tique-taque dos tamancos na calçada de cascalho da ribeira era o Zé que chegava, com os seus sempre habituais safões de pele de vitela, ferrada do leite na mão, para parcas horas depois regressar á quinta e pernoitar sozinho, no desconchego da choça.


João Filipe                 

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