David Tomé
Nos meados do
século XX vivia na Bemposta um guarda-republicano reformado, homem atarracado e
bonacheirão de voz arrastada e temporizada, aparentando tal como a aldeia,
ciente e orgulhosa do seu passado, de não ligar à passagem do tempo.
O Ti David Tomé
era pessoa de conversa fácil e despreocupada convivia com todos e bastava um
“bom-dia” ou uma “boa-tarde”, para a todos revelar o seu estado de alma.
Conhecido como era de caracter pandego e folgazão, as romarias da região eram
por ele calcorreadas na companhia do burro, do cão e da concertina, elementos
indispensáveis das suas jornadas.
O Ti David Tomé,
pouco ou nada fazia já que a sua pensão de reformado da GNR, chegava-lhe e bastava
para viver mais a esposa com quem tinha casado em segundas núpcias, passando o
seu tempo sentado à soleira da porta e nas vésperas das festas conhecido como
era de grande romeiro as perguntas eram óbvias.
– Boa tarde Ti
David, então como vai?
– Cá vamos indo
como Deus quer, não fosse esta maldita gota que me derreia aqui as ancas… Disse,
endireitando-se e apalpando com as duas mãos os quadris.
– Sabe, é do
tempo.
– É bem capaz –
suspirou com queixumes. – Este maldito tempo está vário.
Estou a vê-lo tão
sossegado. Não vai à Santa Luzia?
Como quem necessitasse
de ponderar a resposta, o Ti David demorou alguns instantes a responder,
entretido que estava a afiar a navalha, numa pedra abrasiva que por ali tinha
encontrado.
- Ná – maneando a
cabeça – na vou. Ando de mal com a Santa Luzia.
- Anda de mal com
a Santa Luzia? Não me diga! Então porquê?
O Ti David tinha
uma ligação muito próxima quase profana, de amor-ódio com estas divindades.
- O ano passado
fomos lá, eu a burra e o “fadista”, chovia que Deus a mandava e quando tentamos
abrigar-nos num caramanchão perto da estrada fiquei preso num silvado e caí da
burra, enlameei o fato todo.
- Mas a Santa
Luzia não teve culpa. Ou teve?
- Culpa não teve,
mas era obrigação dela proteger-me para não cair.
Respondeu algo
desavindo e indisposto.
- Mas anda
zangado com todas.
Resposta pronta.
- Não! Gosto
muito de ir à Senhora do Almurtão e à Senhora da Póvoa, à primeira; porque tem
lá um prado ao pé da capela e encho lá a barriga à burra, à segunda porque
depois da missa pego na minha “sanfona” e armo lá um balho que nem te conto.
Outra vez que por
ali passei, estava o Ti David fruindo e saboreando refastelado os restos de uma
merenda bem anafada quando o questionei.
- Boa tarde Ti
David que belo manjar aí tem.
- Senta-te daí,
come e dá uma gaitada na borracha.
Na época, quase todos
os raianos que se prezavam usavam uma borracha de couro espanhola para beberem
o vinho, fazendo do acto de beber um verdadeiro ritual: prendiam a borracha com
o cordão a uma das mãos e com a outra pressionavam-na, enquanto iam esticando
os braços simultaneamente para a frente e para cima, até que obtivessem um
espicho de vinho de relativa espectacularidade. Não sendo eu nenhum experto peguei
na borracha e ensaiei o ritual, salvo algumas lágrimas de vinho que me
borrifaram a cara, consegui beber uma quantidade assinalável de vinho.
- São as sobras
do casamento novo.
- Já sei que
voltou a casar.
- É a vida. A
minha primeira mulher já morreu há algum tempo apesar das promessas de novenas
e ir a pé à Senhora de Fátima, e ter prometido e empatado um cordão se ela
ficasse boa, mas a Senhora de Fátima assim não quis. É uma Senhora rica, tem lá
muitos padres e muitos devotos e talvez achasse a minha oferenda muito
pobrezinha. Fiquei de mal com ela.
- Tenho de ir
andando. Bem-haja pela pinga e boa sorte com a sua presente mulher.
- Vai com Deus
rapaz.
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