sábado, 21 de março de 2015

David Tomé



Nos meados do século XX vivia na Bemposta um guarda-republicano reformado, homem atarracado e bonacheirão de voz arrastada e temporizada, aparentando tal como a aldeia, ciente e orgulhosa do seu passado, de não ligar à passagem do tempo.
O Ti David Tomé era pessoa de conversa fácil e despreocupada convivia com todos e bastava um “bom-dia” ou uma “boa-tarde”, para a todos revelar o seu estado de alma. Conhecido como era de caracter pandego e folgazão, as romarias da região eram por ele calcorreadas na companhia do burro, do cão e da concertina, elementos indispensáveis das suas jornadas.
O Ti David Tomé, pouco ou nada fazia já que a sua pensão de reformado da GNR, chegava-lhe e bastava para viver mais a esposa com quem tinha casado em segundas núpcias, passando o seu tempo sentado à soleira da porta e nas vésperas das festas conhecido como era de grande romeiro as perguntas eram óbvias.
– Boa tarde Ti David, então como vai?
– Cá vamos indo como Deus quer, não fosse esta maldita gota que me derreia aqui as ancas… Disse, endireitando-se e apalpando com as duas mãos os quadris.
– Sabe, é do tempo.
– É bem capaz – suspirou com queixumes. – Este maldito tempo está vário.
Estou a vê-lo tão sossegado. Não vai à Santa Luzia?
Como quem necessitasse de ponderar a resposta, o Ti David demorou alguns instantes a responder, entretido que estava a afiar a navalha, numa pedra abrasiva que por ali tinha encontrado.
- Ná – maneando a cabeça – na vou. Ando de mal com a Santa Luzia.
- Anda de mal com a Santa Luzia? Não me diga! Então porquê?
O Ti David tinha uma ligação muito próxima quase profana, de amor-ódio com estas divindades.
- O ano passado fomos lá, eu a burra e o “fadista”, chovia que Deus a mandava e quando tentamos abrigar-nos num caramanchão perto da estrada fiquei preso num silvado e caí da burra, enlameei o fato todo.
- Mas a Santa Luzia não teve culpa. Ou teve?
- Culpa não teve, mas era obrigação dela proteger-me para não cair.
Respondeu algo desavindo e indisposto.
- Mas anda zangado com todas.
Resposta pronta.
- Não! Gosto muito de ir à Senhora do Almurtão e à Senhora da Póvoa, à primeira; porque tem lá um prado ao pé da capela e encho lá a barriga à burra, à segunda porque depois da missa pego na minha “sanfona” e armo lá um balho que nem te conto. 
Outra vez que por ali passei, estava o Ti David fruindo e saboreando refastelado os restos de uma merenda bem anafada quando o questionei.
- Boa tarde Ti David que belo manjar aí tem.
- Senta-te daí, come e dá uma gaitada na borracha.
Na época, quase todos os raianos que se prezavam usavam uma borracha de couro espanhola para beberem o vinho, fazendo do acto de beber um verdadeiro ritual: prendiam a borracha com o cordão a uma das mãos e com a outra pressionavam-na, enquanto iam esticando os braços simultaneamente para a frente e para cima, até que obtivessem um espicho de vinho de relativa espectacularidade. Não sendo eu nenhum experto peguei na borracha e ensaiei o ritual, salvo algumas lágrimas de vinho que me borrifaram a cara, consegui beber uma quantidade assinalável de vinho.
- São as sobras do casamento novo.
- Já sei que voltou a casar.
- É a vida. A minha primeira mulher já morreu há algum tempo apesar das promessas de novenas e ir a pé à Senhora de Fátima, e ter prometido e empatado um cordão se ela ficasse boa, mas a Senhora de Fátima assim não quis. É uma Senhora rica, tem lá muitos padres e muitos devotos e talvez achasse a minha oferenda muito pobrezinha. Fiquei de mal com ela.
- Tenho de ir andando. Bem-haja pela pinga e boa sorte com a sua presente mulher.

- Vai com Deus rapaz.       

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