segunda-feira, 1 de junho de 2015

O BOM FANTASMA

Chamo-me Petrus, “Lusitanus”, contemporâneo de Jesus “Nazarenus” aquele que muitos de vós acreditam ser o Salvador. Sou filho de Nix e de Gaia e neto de Kaos . As razões da minha já tão longa existência? Contentai-vos por agora, se vos disser que não ando por meu mal e que não ambulo para vos fazer mal, vagueio por um capricho divino.
…………………………………………………………………………………………………………………………………………………..
Acamado, o Ti Manel continuava isolado e fechado às sete chaves na sua casa sem janelas, ouvindo-se na rua os vagados sincopados da sua respiração, entremeado de um arrazoado delirante e inexpressivo. Nunca tinha ousado entrar naquela casa. Ponderei a minha decisão quando o solilóquio se tornou deveras aflitivo e febril, considerando o pior, entrei. O negro, negro do cubículo toldou-me a minha supervisão de fantasma, permanecendo alguns minutos encostado à parede até me aclimatar ao escuro. Pouco a pouco identifiquei á direita; uma mesa quadrada de sensivelmente um metro de lado protegida por um oleado de desenhos quadriculares e de várias cores fixo ao tampo por brochas douradas junto à bainha e, em cima, uma marmita do resto do jantar talvez deixado pelas meninas do lar, à esquerda e encostada à parede uma tarimba onde se lobrigava um rosto qual cabeça de abutre; careca de uma cor enfezada e macilenta, os olhos embatucados nas órbitas escuras e descomunais, o nariz adunco e em forma de foice, poisava na boca desdentada sobre um queixo retraído.
Quando se apercebeu da minha presença endireitou o busto seco de pássaro, esgargalou os olhos abrindo desmesuradamente a boca e voltando a cair na enxerga, como possuído pelo demónio encetou uma serie de urros em tons inusitadas e incomuns, tentei acalma-lo, parecia possesso. Apressadamente, retirei-me e saí.
Minutos depois os vizinhos alvoroçados pela gritaria e temendo pela saúde do ti Manel, arrombaram a porta e entraram, direccionando a candeia para o doente postado contra a parede branquinho como a cal dizendo ter visto um intruso que o queria matar. Tentaram aquieta-lo, mas ele ansioso e febril repetia engasulado:
- É o Demónio. Os Porco-sujo… (repetia olhando em todas as direcções) Ajudem-me.
Quantas não são as vezes que os seres humanos ou não, agem por bem, no intuito de ajudar e são desavindos e mal interpretados. Porque será que um desconhecido terá que à partida ser mau? Porque é incomum? E tu? Sim tu aí recostado no sofá que apoia tudo e todos e se compadece de tudo o que passa na televisão. Será que só estais habituados a uma lógica cíclica e regular das coisas? Talvez. Sois infelizes mas acomodados.


João Filipe ln “As Avós da Minha Terra”

Sem comentários: