UMA NOITE NA QUINTA DO MAJOR (SERRA DA MALCATA)
…Durante algum tempo perdi-me em pequenos devaneios e desatinos, contemplando as labaredas com os olhos quedos e despreocupados, olvidando a cavaqueira dos meus amigos. O lume foi assunto que sempre me fascinou e escravizou em torpores lânguidos e hipnóticos. Durante milhares de anos foi assunto de medos, superstições e adoração. Os homens primitivos associavam o fogo à catástrofe e tragédia. Muitas vezes apavoravam-se ao ver os raios a incendiarem as florestas e os vulcões em erupção, metamorfoseando a paisagem num inferno de lava incandescente. Assim eu, sentado em volta da lareira, perdia-me cavalgando os cavalos da imaginação, criando estranhas visões por entre as chamas inflamadas e luzentes. Até que o Pipas me trouxe à realidade e às cruas existências, com o timbre suave e harmonioso das cordas da viola.
Risonho e encobrindo as minhas quiméricas fantasias, peguei no meu instrumento de caixa hexagonal e tentei acompanhar o Zé nos seus devaneios musicais, aplaudido pelo Chico que se digladiava em abrir mais uma garrafa. O Amoroso, com duas colheres à guisa de castanholas, intentava em marcar os compassos. Começámos por tocar Zeca Afonso e Zé Mário Branco, músicas interventivas, bandeiras de uma revolução falhada, e acabámos eram já altas horas da madrugada a cantarolar o “ malhão” e o “comboio da Beira Baixa”.
Já a noite se descobria da mantilha sombria e indefinida, ainda nós de olhos bugalhudos e melífluos, sentados em volta do brasido, descabeçávamos o sono à espera da aurora que ressurgia, alva e fluorescente por detrás das entenebrecidas e escabrosas penhas. Um a um fomos abandonando a clareira, desperta com a alvorada e o gorjeio trinado do pisco-chilreiro, sorumbáticos e ensimesmados, e recolhemos às tarimbas que nos esperavam reservadas e discretas no mutismo do edifício, com amplexos lascivos e prometimentos de oníricas cavalgadas em corcéis de fantasia.
João Filipe
calhameiro
quarta-feira, 23 de maio de 2018
terça-feira, 29 de agosto de 2017
Noites inebriantes
Esta noite deambulei à toa pela floresta.
Excitado gatinhei, marchei, morri-me para atingir o cume.
Esbaforido olhei o mundo a meus pés e por ali fiquei, num
tempo sem tempo, perdido em mil e um pormenores.
Desalentado desci.
Caí com a impressão que tinha esgotado todas as munições
João Filipe
quarta-feira, 19 de abril de 2017
CHICO MALTÊS
Seco e zangado, o outono surgiu com
os seus desvarios, desnudando o plantio nos vergéis deixando transparecer o seu
estado de espírito, num esbracejar contínuo de mil ramos e de mil bocas,
ululantes e indispostas.
Descontentes os olivais
protestavam, desprendendo a custo, tristes e lacrimosos a azeitona verde na sua
prematura criação, enquanto os aldeões acoitados e aterrorizados, exorcizavam os
espíritos, com promessas de novenas, procissões e martírios corporais.
O Chico Maltês; quarentão feio e
doentio, peito curvo como o de uma ave, cabeça calva, o pescoço magro, o nariz
proeminente e caído em ar de foice, parecendo um abutre, era pessoa desavinda e
malquista na aldeia mas, nestas alturas em que as forças da natureza se
assanhavam e enfureciam e perante o medo generalizado entre os seus pares, parecia
ganhar poderes de médium, insurgia-se levantando os braços e com a voz rouca e
bafienta clamava:
- Povo da terra! Unamo-nos e
todos juntos como filhos devotos, façamos uma procissão ao mudar da lua e
humildemente roguemos à Santíssima Nossa Senhora…Nossa Mãe e Mãe de Deus que
acalme estes vendavais, só ELA, nos poderá salvar destes ventos demoníacos que,
nos destoem as colheitas e nos impedem de malhar o pão.
O padre, alegando serem
desaprovadas pelo bispo repudiava estas práticas mas nada fazia temendo a ira
da população, assim, ”o Maltês” coadjuvado por um grupo reduzido e restrito de
acólitos, subiram a serra com o nome da Senhora, retiraram a imagem do nicho, trouxeram-na
para a entrada da aldeia, perante a receptividade das gentes do povoado que ávidas
de milagres, ressurgiam da noite empunhando velas tremeluzentes, quais
testemunhos de fé. Lentamente, o novelo cintilante qual monstro flagelado,
começou desenrolar-se distendendo-se em direcção ao povoado enquanto o vento
irado e em protesto, soprava e silvava por tudo onde era sítio, os seus roncos
desbragados eram tónico para os penitentes que, exorcizavam o medo entoando
cânticos à santa milagreira.
Segurando a imagem da santinha bem alto, a procissão
encabeçada pelo “Maltês” rompendo lentamente o negro da noite em direcção à
Igreja paroquial circundando-a, parecendo querer abraça-la num manto cintilante.
Hirto e à frente da populaça, devagar, muito devagar e em tom de ritual, entrou
na igreja, subiu a coxia e segurando a imagem entre as trémulas mãos, (as mesmas
mas mais assertivas, outras mais vezes usadas para pilhar galinhas, ou, com
blandícias de pervertido acariciar crianças desprotegidas) expos a Santinha num
altar lateral por entre vénias e mesuras.
Ana convicta e confessa nos
poderes de Maria acompanhou até ao fim o cerimonial, enquanto o João, seu
marido, avesso a estes ritos, deambulava pelas tabernas perpetuando velhos
hábitos, regressando a casa já altas horas da madrugada. Resmungando, batia com
as portas e criticava a mulher e todos os outros basbaques, pelas suas crenças
e serem comandados por um filha-da-puta, sedutor de crianças.
Em vão Ana tentou esboçar algumas reacções, no
sentido de acalmar a ira do marido, perante tamanha animosidade.
- Cala-te ranhosa de merda, sois
todas umas putas… o que quereis é folguedo, mas descansa, ganda vaca, a
festança vem a caminho, mais rápido do que julgas.
Foi o princípio de um longo
calvário, prenhe de dor e de lágrimas.
O estigma da família estava
reaberto e a chaga tinha renascido.
Adivinhavam-se tempos de cólera.
João Filipe
domingo, 15 de janeiro de 2017
MANHÃ DE SOLSTÍCIO
Esta manhã senti nas mãos a madrugada, nutri-me da luz que vinha muito muito devagar.
Tudo era cruel, por ser igual a todos os dias, por ser sempre igual, porque nada se compadecia pelo tempo passar pelo mundo ou o mundo passar pelo tempo e eu aqui resto neste cantinho do mundo, a ser um pouco do mundo e não poder interferir nos seus desígnios.
Tudo era cruel, por ser igual a todos os dias, por ser sempre igual, porque nada se compadecia pelo tempo passar pelo mundo ou o mundo passar pelo tempo e eu aqui resto neste cantinho do mundo, a ser um pouco do mundo e não poder interferir nos seus desígnios.
Conversas sem Sentido
João Filipe
João Filipe
TERTÚLIAS NA TABERNA
No Estado a argumentação moral é
apenas mais um meio para atingir o fim, um meio de combate a que recorre varias
vezes, tal como recorre à mentira.
Assim na sua qualidade de pessoa “suprapessoal”
adopta sem reservas o princípio que se pode roubar, matar e enganar se daí
advier poder e aumento do P:I:B.
Reflexões
João Filipe
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016
PETRUS LATINUS E AS SUAS CIRCUNSTÂNCIAS.
… Por modo do avançado da idade a ti Ana passava a maior
parte dos dias ao lume, salvo muito poucos no pino do verão que vinha até à
soleira da porta e sentava--se na sua banca de cortiça e deliciava-se com os
últimos afagos do sol que molemente se sumia no horizonte, não sendo o caso esse
dia, entrei e divisei a ti Ana sentada na seu tropeço de meia-lua à esquerda da
lareira.
- Boa tarde Ti Ana. Dá-me licença que me sente a seu lado?
Perguntei, após ter franqueado a porta
Então ela, de queixo descaído e boca escancarada, arregalou
as pálpebras numa tentativa de me ver melhor, de me sentir melhor, de me
observar melhor. Até que por fim as suas pálpebras, se baixaram. Já não tinha
interesse, em distinguir a realidade do sonho, inerte, tranquila e ausente,
deixou-se examinar sem impaciência pelos meus olhos inquietos.
O universo forma um todo estranho hermético onde ela,
alienada do mundo já não tinha lugar, estava só…, só em presença do mistério.
Entretanto o seu olhar ficava parado nos mil e um diabinhos, formados nas
labaredas e que estranhamente se iam desprendendo das chamas e lhe invadiam a
casa, sabendo ela, se continuasse imóvel, eles fugiriam para o exterior e
estaria protegida, porque todos os dias antes de atar o cabelo escondia dois
crucifixos, um de cada lado da cabeça por entre o cabelo e uma imagem no cocuruto
do Sagrado Coração de Jesus
- É melhor ires para casa Petrus, - Disse-me ela – os
demónios costumam sair ao entardecer á procura das almas errantes se não
encontrarem nenhuma, estoiram com o calor mas se encontrarem alguma perdida,
chupam-lhe o sangue para se alimentarem.
- Fique com Deus Ti Ana. – Disse.
Com os ouvidos atordoados, e azoinados de afogada, o som
chegava-lhe aos ouvidos intermitente e os olhos, pequeninos de água, escondidos
por detrás das sobrancelhas, levantam-se, esperando que eu me sumisse …
Extrato da obra “Petrus Latinus e as suas circunstâncias.”
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016
CONVERSAS NA
TABERNA
Na aldeia o dia
escorria calmo, tal calmo como a calmaria que o atabafava.
Na taberna, os clientes chegavam a conta-gotas
ofegantes e esbaforidos com a canícula e dolentes, encostavam a barriga ao
balcão reclamando uma bebida que lhes matasse a sequidão.
«Dois tintos frescos», ordenaram-me dois velhotes;
um baixote e de rosto vermelhusco e fosse pela pouca claridade que havia no
balcão, ao retirar os óculos, numa tentativa frustrada de agarrar o copo ou de
me ver melhor, mostrou os olhos desembaraçados dos vidros, eram pestanejantes e
patéticos, o outro, um pouco mais jovem com uma mancha incolor quase branca que
lhe maculava os cabelos escuros, tinha os olhos engastados nas órbitas
escurecidas, falava calmamente parecendo meditar.
Enquanto outros, com a mesma entidade e as mesmas
convicções, passavam dias inteiros sentados conversando, conversando da maneira
mais livre mais despegada e mais sincera, sem se compreenderem, ou se tentarem
compreender por um minuto… sem se encontrarem nem fazerem um esforço de se
encontrar, nem que fosse por um segundo
Afáveis e risonhos, aparentavam tranquilidade
por fora, mas diziam palavras tão angustiadas e tinham o espírito tão oprimido,
que o mais certo, era o fado da já longa caminhada, lhes ter macerado e
desengranzado a existência, ou ter-lhes rogado peçonha.
Nós, sabemos dessa solidão!...É a solidão de Babel
(maldição).
Conversas sem sentido
João Filipe
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