quarta-feira, 23 de maio de 2018

UMA NOITE NA QUINTA DO MAJOR (SERRA DA MALCATA)


…Durante algum tempo perdi-me em pequenos devaneios e desatinos, contemplando as labaredas com os olhos quedos e despreocupados, olvidando a cavaqueira dos meus amigos. O lume foi assunto que sempre me fascinou e escravizou em torpores lânguidos e hipnóticos. Durante milhares de anos foi assunto de medos, superstições e adoração. Os homens primitivos associavam o fogo à catástrofe e tragédia. Muitas vezes apavoravam-se ao ver os raios a incendiarem as florestas e os vulcões em erupção, metamorfoseando a paisagem num inferno de lava incandescente. Assim eu, sentado em volta da lareira, perdia-me cavalgando os cavalos da imaginação, criando estranhas visões por entre as chamas inflamadas e luzentes. Até que o Pipas me trouxe à realidade e às cruas existências, com o timbre suave e harmonioso das cordas da viola.
Risonho e encobrindo as minhas quiméricas fantasias, peguei no meu instrumento de caixa hexagonal e tentei acompanhar o Zé nos seus devaneios musicais, aplaudido pelo Chico que se digladiava em abrir mais uma garrafa. O Amoroso, com duas colheres à guisa de castanholas, intentava em marcar os compassos. Começámos por tocar Zeca Afonso e Zé Mário Branco, músicas interventivas, bandeiras de uma revolução falhada, e acabámos eram já altas horas da madrugada a cantarolar o “ malhão” e o “comboio da Beira Baixa”.
Já a noite se descobria da mantilha sombria e indefinida, ainda nós de olhos bugalhudos e melífluos, sentados em volta do brasido, descabeçávamos o sono à espera da aurora que ressurgia, alva e fluorescente por detrás das entenebrecidas e escabrosas penhas. Um a um fomos abandonando a clareira, desperta com a alvorada e o gorjeio trinado do pisco-chilreiro, sorumbáticos e ensimesmados, e recolhemos às tarimbas que nos esperavam reservadas e discretas no mutismo do edifício, com amplexos lascivos e prometimentos de oníricas cavalgadas em corcéis de fantasia.



João Filipe

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Noites inebriantes

Esta noite deambulei à toa pela floresta.
Excitado gatinhei, marchei, morri-me para atingir o cume.
Esbaforido olhei o mundo a meus pés e por ali fiquei, num tempo sem tempo, perdido em mil e um pormenores.
Desalentado desci.
Caí com a impressão que tinha esgotado todas as munições


João Filipe

quarta-feira, 19 de abril de 2017

CHICO MALTÊS

Seco e zangado, o outono surgiu com os seus desvarios, desnudando o plantio nos vergéis deixando transparecer o seu estado de espírito, num esbracejar contínuo de mil ramos e de mil bocas, ululantes e indispostas.
Descontentes os olivais protestavam, desprendendo a custo, tristes e lacrimosos a azeitona verde na sua prematura criação, enquanto os aldeões acoitados e aterrorizados, exorcizavam os espíritos, com promessas de novenas, procissões e martírios corporais.
O Chico Maltês; quarentão feio e doentio, peito curvo como o de uma ave, cabeça calva, o pescoço magro, o nariz proeminente e caído em ar de foice, parecendo um abutre, era pessoa desavinda e malquista na aldeia mas, nestas alturas em que as forças da natureza se assanhavam e enfureciam e perante o medo generalizado entre os seus pares, parecia ganhar poderes de médium, insurgia-se levantando os braços e com a voz rouca e bafienta clamava:
- Povo da terra! Unamo-nos e todos juntos como filhos devotos, façamos uma procissão ao mudar da lua e humildemente roguemos à Santíssima Nossa Senhora…Nossa Mãe e Mãe de Deus que acalme estes vendavais, só ELA, nos poderá salvar destes ventos demoníacos que, nos destoem as colheitas e nos impedem de malhar o pão.
O padre, alegando serem desaprovadas pelo bispo repudiava estas práticas mas nada fazia temendo a ira da população, assim, ”o Maltês” coadjuvado por um grupo reduzido e restrito de acólitos, subiram a serra com o nome da Senhora, retiraram a imagem do nicho, trouxeram-na para a entrada da aldeia, perante a receptividade das gentes do povoado que ávidas de milagres, ressurgiam da noite empunhando velas tremeluzentes, quais testemunhos de fé. Lentamente, o novelo cintilante qual monstro flagelado, começou desenrolar-se distendendo-se em direcção ao povoado enquanto o vento irado e em protesto, soprava e silvava por tudo onde era sítio, os seus roncos desbragados eram tónico para os penitentes que, exorcizavam o medo entoando cânticos à santa milagreira.
 Segurando a imagem da santinha bem alto, a procissão encabeçada pelo “Maltês” rompendo lentamente o negro da noite em direcção à Igreja paroquial circundando-a, parecendo querer abraça-la num manto cintilante. Hirto e à frente da populaça, devagar, muito devagar e em tom de ritual, entrou na igreja, subiu a coxia e segurando a imagem entre as trémulas mãos, (as mesmas mas mais assertivas, outras mais vezes usadas para pilhar galinhas, ou, com blandícias de pervertido acariciar crianças desprotegidas) expos a Santinha num altar lateral por entre vénias e mesuras.
Ana convicta e confessa nos poderes de Maria acompanhou até ao fim o cerimonial, enquanto o João, seu marido, avesso a estes ritos, deambulava pelas tabernas perpetuando velhos hábitos, regressando a casa já altas horas da madrugada. Resmungando, batia com as portas e criticava a mulher e todos os outros basbaques, pelas suas crenças e serem comandados por um filha-da-puta, sedutor de crianças.
 Em vão Ana tentou esboçar algumas reacções, no sentido de acalmar a ira do marido, perante tamanha animosidade.
- Cala-te ranhosa de merda, sois todas umas putas… o que quereis é folguedo, mas descansa, ganda vaca, a festança vem a caminho, mais rápido do que julgas.
Foi o princípio de um longo calvário, prenhe de dor e de lágrimas.
O estigma da família estava reaberto e a chaga tinha renascido.
Adivinhavam-se tempos de cólera.


João Filipe

domingo, 15 de janeiro de 2017

MANHÃ DE SOLSTÍCIO
Esta manhã senti nas mãos a madrugada, nutri-me da luz que vinha muito muito devagar.
Tudo era cruel, por ser igual a todos os dias, por ser sempre igual, porque nada se compadecia pelo tempo passar pelo mundo ou o mundo passar pelo tempo e eu aqui resto neste cantinho do mundo, a ser um pouco do mundo e não poder interferir nos seus desígnios.
Conversas sem Sentido
João Filipe
TERTÚLIAS NA TABERNA


No Estado a argumentação moral é apenas mais um meio para atingir o fim, um meio de combate a que recorre varias vezes, tal como recorre à mentira.
Assim na sua qualidade de pessoa “suprapessoal” adopta sem reservas o princípio que se pode roubar, matar e enganar se daí advier poder e aumento do P:I:B.


Reflexões

João Filipe

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

PETRUS LATINUS E AS SUAS CIRCUNSTÂNCIAS.



… Por modo do avançado da idade a ti Ana passava a maior parte dos dias ao lume, salvo muito poucos no pino do verão que vinha até à soleira da porta e sentava--se na sua banca de cortiça e deliciava-se com os últimos afagos do sol que molemente se sumia no horizonte, não sendo o caso esse dia, entrei e divisei a ti Ana sentada na seu tropeço de meia-lua à esquerda da lareira.
- Boa tarde Ti Ana. Dá-me licença que me sente a seu lado?
Perguntei, após ter franqueado a porta
Então ela, de queixo descaído e boca escancarada, arregalou as pálpebras numa tentativa de me ver melhor, de me sentir melhor, de me observar melhor. Até que por fim as suas pálpebras, se baixaram. Já não tinha interesse, em distinguir a realidade do sonho, inerte, tranquila e ausente, deixou-se examinar sem impaciência pelos meus olhos inquietos.
O universo forma um todo estranho hermético onde ela, alienada do mundo já não tinha lugar, estava só…, só em presença do mistério. Entretanto o seu olhar ficava parado nos mil e um diabinhos, formados nas labaredas e que estranhamente se iam desprendendo das chamas e lhe invadiam a casa, sabendo ela, se continuasse imóvel, eles fugiriam para o exterior e estaria protegida, porque todos os dias antes de atar o cabelo escondia dois crucifixos, um de cada lado da cabeça por entre o cabelo e uma imagem no cocuruto do Sagrado Coração de Jesus
- É melhor ires para casa Petrus, - Disse-me ela – os demónios costumam sair ao entardecer á procura das almas errantes se não encontrarem nenhuma, estoiram com o calor mas se encontrarem alguma perdida, chupam-lhe o sangue para se alimentarem.
- Fique com Deus Ti Ana. – Disse.
Com os ouvidos atordoados, e azoinados de afogada, o som chegava-lhe aos ouvidos intermitente e os olhos, pequeninos de água, escondidos por detrás das sobrancelhas, levantam-se, esperando que eu me sumisse …



Extrato da obra “Petrus Latinus e as suas circunstâncias.”

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

CONVERSAS NA TABERNA



Na aldeia o dia escorria calmo, tal calmo como a calmaria que o atabafava.
Na taberna, os clientes chegavam a conta-gotas ofegantes e esbaforidos com a canícula e dolentes, encostavam a barriga ao balcão reclamando uma bebida que lhes matasse a sequidão.
«Dois tintos frescos», ordenaram-me dois velhotes; um baixote e de rosto vermelhusco e fosse pela pouca claridade que havia no balcão, ao retirar os óculos, numa tentativa frustrada de agarrar o copo ou de me ver melhor, mostrou os olhos desembaraçados dos vidros, eram pestanejantes e patéticos, o outro, um pouco mais jovem com uma mancha incolor quase branca que lhe maculava os cabelos escuros, tinha os olhos engastados nas órbitas escurecidas, falava calmamente parecendo meditar.
Enquanto outros, com a mesma entidade e as mesmas convicções, passavam dias inteiros sentados conversando, conversando da maneira mais livre mais despegada e mais sincera, sem se compreenderem, ou se tentarem compreender por um minuto… sem se encontrarem nem fazerem um esforço de se encontrar, nem que fosse por um segundo
 Afáveis e risonhos, aparentavam tranquilidade por fora, mas diziam palavras tão angustiadas e tinham o espírito tão oprimido, que o mais certo, era o fado da já longa caminhada, lhes ter macerado e desengranzado a existência, ou ter-lhes rogado peçonha.
Nós, sabemos dessa solidão!...É a solidão de Babel  (maldição).



Conversas sem sentido


João Filipe