quarta-feira, 19 de abril de 2017

CHICO MALTÊS

Seco e zangado, o outono surgiu com os seus desvarios, desnudando o plantio nos vergéis deixando transparecer o seu estado de espírito, num esbracejar contínuo de mil ramos e de mil bocas, ululantes e indispostas.
Descontentes os olivais protestavam, desprendendo a custo, tristes e lacrimosos a azeitona verde na sua prematura criação, enquanto os aldeões acoitados e aterrorizados, exorcizavam os espíritos, com promessas de novenas, procissões e martírios corporais.
O Chico Maltês; quarentão feio e doentio, peito curvo como o de uma ave, cabeça calva, o pescoço magro, o nariz proeminente e caído em ar de foice, parecendo um abutre, era pessoa desavinda e malquista na aldeia mas, nestas alturas em que as forças da natureza se assanhavam e enfureciam e perante o medo generalizado entre os seus pares, parecia ganhar poderes de médium, insurgia-se levantando os braços e com a voz rouca e bafienta clamava:
- Povo da terra! Unamo-nos e todos juntos como filhos devotos, façamos uma procissão ao mudar da lua e humildemente roguemos à Santíssima Nossa Senhora…Nossa Mãe e Mãe de Deus que acalme estes vendavais, só ELA, nos poderá salvar destes ventos demoníacos que, nos destoem as colheitas e nos impedem de malhar o pão.
O padre, alegando serem desaprovadas pelo bispo repudiava estas práticas mas nada fazia temendo a ira da população, assim, ”o Maltês” coadjuvado por um grupo reduzido e restrito de acólitos, subiram a serra com o nome da Senhora, retiraram a imagem do nicho, trouxeram-na para a entrada da aldeia, perante a receptividade das gentes do povoado que ávidas de milagres, ressurgiam da noite empunhando velas tremeluzentes, quais testemunhos de fé. Lentamente, o novelo cintilante qual monstro flagelado, começou desenrolar-se distendendo-se em direcção ao povoado enquanto o vento irado e em protesto, soprava e silvava por tudo onde era sítio, os seus roncos desbragados eram tónico para os penitentes que, exorcizavam o medo entoando cânticos à santa milagreira.
 Segurando a imagem da santinha bem alto, a procissão encabeçada pelo “Maltês” rompendo lentamente o negro da noite em direcção à Igreja paroquial circundando-a, parecendo querer abraça-la num manto cintilante. Hirto e à frente da populaça, devagar, muito devagar e em tom de ritual, entrou na igreja, subiu a coxia e segurando a imagem entre as trémulas mãos, (as mesmas mas mais assertivas, outras mais vezes usadas para pilhar galinhas, ou, com blandícias de pervertido acariciar crianças desprotegidas) expos a Santinha num altar lateral por entre vénias e mesuras.
Ana convicta e confessa nos poderes de Maria acompanhou até ao fim o cerimonial, enquanto o João, seu marido, avesso a estes ritos, deambulava pelas tabernas perpetuando velhos hábitos, regressando a casa já altas horas da madrugada. Resmungando, batia com as portas e criticava a mulher e todos os outros basbaques, pelas suas crenças e serem comandados por um filha-da-puta, sedutor de crianças.
 Em vão Ana tentou esboçar algumas reacções, no sentido de acalmar a ira do marido, perante tamanha animosidade.
- Cala-te ranhosa de merda, sois todas umas putas… o que quereis é folguedo, mas descansa, ganda vaca, a festança vem a caminho, mais rápido do que julgas.
Foi o princípio de um longo calvário, prenhe de dor e de lágrimas.
O estigma da família estava reaberto e a chaga tinha renascido.
Adivinhavam-se tempos de cólera.


João Filipe

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