domingo, 31 de maio de 2015

O REVOLUCIONÁRIO

O Pipas, do Vale de Lobo (Vale da Senhora da Póvoa), media aproximadamente 1,80m de altura, era corpulento e espadaúdo, com braços curtos mas grossos terminando nuns punhos extraordinários. Era de um vigor e tenacidade alarmantes, o cabelo ruivo acentuava-lhe a cor de cenourinha do rosto pintalgado, os olhos de um verde muito claro, descansando sobre um nariz forte e escarlate, alternavam para azul consoante a luminosidade e dos lábios finos e risonhos, prendia um queixo minúsculo mas sólido. A alcunha proveio-lhe talvez pelo excesso de “Pês” no nome, ou, quiçá, pela sua grande apetência por bebidas alcoólicas. Era médio-centro, fazendo assim jus à agressividade que ostentava e tinha um carácter pouco dado a derrotas mesmo consumadas, raramente as aceitava. Tinha também um cunho brigão e rezingão, estando quase sempre contra tudo e contra todos. Hoje vive em Lisboa, é solteiro, tendo já visitado várias vezes a prisão por insurreições políticas e sociais, provocadas em bares nocturnos a altas horas da madrugada. Creio tê-lo visto há alguns anos. Estava igual, um eterno descontente.
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Santa Apolónia, sete e trinta da manhã. Pedro esperava pacientemente na fila a sua vez para comprar um ingresso no comboio rápido que ligava Lisboa a Castelo Branco. Após ter adquirido o bilhete, carregou o saco de viagem pejado de algumas mudas de roupa e, aligeirando a passada, entrou no cais de embarque, escutando os altifalantes que, numa voz fina e melodiosa, anunciavam: “Os Senhores Passageiros que, desejarem viajar no comboio rápido que liga Lisboa-Sta. Apolónia a Castelo Branco, é favor dirigirem-se à linha número um e tomarem os seus lugares. O comboio parte dentro de momentos.”
Pedro mal se lembrava da última vez que tinha usado o comboio e não fosse a GNR ter-lhe confiscado a carta de condução por conduta perigosa e criminal (estado avançado de embriaguez e ofensas aos agente de autoridade), não seria ainda desta. Escolheu uma carruagem de segunda classe, subiu os degraus de acesso e continuou pelo corredor interno, espreitando os compartimentos de forma a escolher o menos ocupado, enquanto o comboio em silvos estridentes anunciava a sua partida. Entrou numa divisão ocupada por dois passageiros – um idoso sentado perto da porta e uma jovem aparentando ter uns vinte anos – num dos lados da janela. Pediu licença e, cumprimentando os ocupantes, sentou-se do outro lado, em frente à adolescente.
No nonagenário, as órbitas avultavam profundas do rosto seco e mirrado, como duas cavas e cavernosas crateras, num sem fundo encarvoado sobre uma calvície quase total, não fossem alguns pêlos insurrectos que teimosamente tentavam cobrir-lhe os lóbulos das orelhas. Observava numa inconstância ritmada provocada pelos solavancos do comboio o que se passava no corredor, mantendo o queixo mirrado, descaído, desvendando o interior da boca desprovida de defesas, sob um nariz fino e adunco.
A jovem, de olhar fixo na corrida desenfreada da paisagem, era altiva e imbuída de uma palidez nórdica, cabelo loiro, muito abundante e caprichosamente ondulado, e pele bem tisnada pelo sol. O rosto apresentava uma requintada serenidade, com um nariz algo aquilino e de narinas bem desenhadas, o lábio superior era curto e magnífico na sua curva e assentava levemente no lábio inferior, deixando espreitar os alvos dentes que reflectiam o mais ínfimo raio solar.
Pedro deleitava-se mirando a jovem mulher, recordando os tempos da revolução e o seu engajamento nas FP25, os medos e as revoltas, os sobressaltos de conjecturar polícias à paisana em todos os cidadãos. Rememorava tempos difíceis e angustiantes, de reuniões clandestinas, viagens a Sintra em comboio atulhados de gente, lembrava-se dos fortuitos encontros familiares e esporádicos, de baixar os olhos e quando os baixava sofria, mas evitava intimidades e possíveis represálias de vigias, semeados e vulgarizados na mole humana. Revia os valhacoutos abstrusos e secretos, dissimulados em chavascais recônditos e escusos, onde se reunia com camaradas de luta, inventando e glorificando governos da classe proletária e, nestas cogitações e reflexões, o comboio sibilou estrepitosamente anunciando a paragem seguinte.

João Filipe 

“Velhos são Os Trapos”