
O tempo foge-nos por entre os dedos e vou-o descobrindo esgotado nos Natais, em volta das labaredas do «Madeiro», degustando as seculares filhoses, circundado pelos filhos e alguns netos, enquanto o esquecimento vai diluindo da memória algumas sombras fugidias da figura da Maria, minha mulher e morta num violento acidente, ou nos longos dias de Verão fruindo das refrescantes e lenitivas sombras dos frondosos freixos, guardiões das vítreas águas nos remansos da ribeira. Rebuscando os velhos arcazes da memória evoco os tempos de escola e relembro-me dos folguedos de outrora, de quão pulcros eram na sua singeleza: os namoros, os furtos nocturnos, em bandos procurando alforrias, nas capoeiras ou nos vergeis da aldeia e os amigos. Ah os amigos! Sempre disponíveis. Fosse nas peregrinações, efectivas romagens aos concertos em voga, festival de jazz em Cascais,Vilar de Mouros e quantos outros como estes inolvidáveis ou na bola, onde os jogos e os lugares eram disputados ferozmente, prenhes de emoções e de irracionalidades.
Eu, José Manuel Salgueiro, o «Botas» da Benquerença (Calhameiro apelido da aldeia), nunca entendi a verdadeira razão da minha alcunha. Talvez fosse pela minha forma de andar, pachorrenta e arrastada dos pés ou quiçá pelo meu voluntarismo aquando das grandes «patuscadas» em fazer o serviço próximo dos garrafões e omitir a preparação dos «petiscos». Jogava a guarda-redes, acredito, não pela minha altura (1,70m) pois havia outros muito mais altos como o «Pernas», o «Pipas» ou o «Gracioso» mas, possivelmente, pelo fraco engenho que patenteava no jogo de campo e assim se determinou a minha ida para a baliza a princípio pouco segura mas, por fim, lá fui aprendendo a cair e a mergulhar nos «pelados» e empedrados campos da época. Hoje, um par de pernas anafadas e arqueadas, sustentam as minhas bochechas descaídas demarcadas por um nariz purpúreo e arrebitado. A adiposidade criada e mantida na «pança» dá a ilusão que o peito me decaiu.
O «Pernas», Francisco Mendes Figueira, da Meimoa (Barrigudo, alcunha da povoação), alto (1,90m) mas dotado de uma boa condição atlética, tinha uma ligeira curvatura nos ombros, e de cabeça inclinada para a frente mostrava uma determinada saliência entre as omoplatas (marreca). Tinha as maçãs do rosto proeminentes e um nariz de falcão, queixo fugidio e a maxila inferior descaída, com uns enormes olhos protuberantes, negros de azeviche, defesa central, talvez nem tanto pela habilidade mas pelo respeito que infringia às linhas avançadas dos adversários . Era peça fundamental na estrutura da equipe, de carácter «bonzão» entre o grupo, estava sempre de acordo com tudo e com todos não «fazendo mal a uma mosca». Hoje vive em França creio que casado com uma Francesa, já há muito tempo que lhe perdi o rasto.
O «Pipas», Pedro Proença de Pascoais, do Vale de Lobo (Arrepiado, alcunha da povoação) media 1,80m de altura aproximadamente, era corpulento e espadaúdo, com braços curtos mas espessos terminando com uns punhos extraordinários mas de um vigor e tenacidade alarmantes. O cabelo ruivo acentuava a cor de cenourinha do rosto pintalgado, os olhos de um verde muito claro alternavam para azul consoante a luminosidade, descansando sobre um nariz forte e escarlate. Os lábios finos e risonhos, prendiam um queixo sólido mas minúsculo. A alcunha proveio-lhe talvez pelo excesso de «pês» no nome ou quiçá pela sua grande apetência por bebidas alcoólicas. Era médio-centro pela sua agressividade nos jogos e de carácter pouco dado a derrotas. Mesmo estando consumadas, raramente as aceitava. Tinha um cunho brigão e rezingão, estando quase sempre contra tudo e contra todos. Hoje vive em Lisboa, é solteiro, já tendo visitado várias vezes a prisão, por insurreições políticas e sociais provocadas em bares nocturnos a altas horas da madrugada. Creio tê-lo visto hà 10 anos, estava igual, um eterno descontente.
O «Gracioso», Paulo de Oliveira Martins dos Três-Povos (Espanhol, alcunha da aldeia), um tudo nada mais alto que eu, era belo, de fazer inveja às esculturas de «Apolo»: os cabelos compridos, castanhos-claros projectavam-se em cascata sobre os ombros entre caracóis intermináveis, reverberando a luz solar em caleidoscópico, os olhos largos e lânguidos enfeitiçavam as amantes que cirandavam como loucas em seu redor. De ombros amplos e peito bem musculado, era sustentado pela cintura excessivamente delgada e as pernas de atleta olímpico. Ganhou a alcunha pela sua formosura. Ponta de lança, parecia passar despercebido nos jogos mas havia momentos que fazia habilidades tais com a bola, de trocar os olhos às defesas adversárias. Era também o menos aventureiro do bando, de formação Cristista, e o único que ia regularmente às manifestações religiosas todas as manhãs de domingo. Era comedido no consumo de bebidas alcoólicas. Hoje é casado com dois filhos, vive em Castelo Branco, é engenheiro ambiental, vejo-o regularmente.
Chamavam-nos «o cócó mais o ranhetas e a menina às facadas» o que pouco nos incomodava salvo o Pipas que se encontrava sempre de feição para estrebuchar, com motivos mais que suficientes para zaragatear e era quase sempre aquietado pelo Pernas.